quinta-feira, 29 de setembro de 2011

GERÊNCIA DE SAÚDE MENTAL: GESTÃO AFETIVA

FELICIDADE: PLANO B

Passei muito tempo depois do grande surto (1991), fazendo questão de relembrar a perda da razão. O "eu dividido". Embora muitas lembranças fossem dolorosas e que me envergonhavam e algumas ainda envergonham e eu não fale delas até hoje. Era preciso lembrar. Eu não sabia nada do manejo dos sintomas. Lembrar de correr e tirar a roupa na rua. Há alguns anos atrás louco que era louco, corria. Sou então uma louca clássica. Lembrar era de certa forma escapar da vida sob o fio de uma navalha, achava como a maioria das pessoas normais que se surta de uma hora para outra. Então cultivava as lembranças do hospital, das fugas, de ficar amarrada a cama em casa quando minha familia me encontrava, dos amigos (graças a Deus sempre tive muitos e alguns muito fiéis), lindos amigos que me arrancaram literalmente de uma internação no Meduna, com argumentos que eu não era louca. Convenceram minha mãe a pedir alta ao Serviço Social.
Mas comecei a escrever justamente pela lembrança que me veio, dolorosa... mas que me fortalece nessa hora de luta: uma internação na extinta clínica ATENDE, lugar pequeno, escuro, na crise aguda e já medicada via as coisas como que esfumaçadas, a realidade não se configurava em sua totalidade. Havia várias pacientes num quarto, não sei precisar na distância do tempo. Uma em especial, mulher elegante, cabelo preto, uns trinta e pouco anos, numa cama talvez perto da minha,  não sei. Mas eu tentava molhar seu cabelo, jogar água nela e esta pedia ajuda. Tentava ser tolerante, colocava suas mãos como proteção, então o técnico de enfermagem me contia e nesse momento, eu dizia coisas que não tenho coragem de escrever aqui. Só lembro das noites, não lembro dos dias.Seu Valério trabalha no HAA, por sua vez eu havia trabalhado com a esposa dele também da enfermagem na clínica Santa Fé, sempre que o vejo, sob seu "olhar clínico" conferindo a "minha cura", dou um abraço no meu cuidador. Tive muita aminésia, as pessoas, a familia me contam coisas sem sentido que fiz.
O acontecimento que parece simples exposto acima tem toda uma dimensão de significados para mim  que somados a luta pela reconquista da razão após três outras internações mais longas, Meduna e HAA me colocam entre aqueles que viveram experiências subjetivas radicais como nos compreende Eduardo Mourão Vasconcelos.
Todos nós olhamos o mundo de forma singular. Ontem a partir da experiência da loucura ( e conhecimento sociológico, com mania de ler as entrelinhas, sempre), como diz Mary Barnies em Viagem através da Loucura, ela que viveu a experiência de Kingsley Hall, que em crises pintava as paredes de fezes, em certo momento de estabilidade de sintomas, da vida, diz que não gosta não é exatamente da loucura, mas da desorganização que esta provoca. " [...] os seios que ela rabiscava, pincelava, lambuzava e borrifava em Kingsley Hall inteiro não eram seios comuns .... eram feitos de merda, tão fedorentos que as pessoas respiravam convulsivamente, ao entrarem num cômodo." A loucura fede. Lembro de Gislene de Bom Jesus, entrei no seu quartinho com grades, sentei com os pés encima do mijo e as fezes no espaço que seria banheiro ainda sem sanitário. Lembro de ontem no encontro de coordenadores de CAPS, alguém teve a idéia de vestir pacientes (estes ainda não tem idéias politicas que entendam que são usuários de um serviço de saúde pública, cidadãos de direito) com camisetas com uma frase: " Me abrace..." e em homenagem ao trabalho de um usuário artesão, uma flozinha vermelha do lado. Flor, perfume, fedor, tudo no inconsciente?
Um fato chamou-me a atenção, o número de pessoas das residências terapêuticas, principalmente a do Memorare deficientes mentais, ex moradores do HAA, um rapaz sem coordenação motora, a cuidadora dava água na boca. Deixemos o amor piegas, disse a mim mesma já insultada por assistir uma cerimônia extremamente longa de elogios ao governador e a governadora, digo  a esposa secretária de saúde, que como as gestoras representantes desta, afirmaram que o CAPS i apenas será reformado, apesar de haver um termo de conduta assinado pela SESAPI de retirada deste de fora do hospital HAA, proposto por Dr. Edmar Oliveira, do Ministério da Saúde, que assessorava o grupo de trabalho que provocou várias e positivas mudanças no atendimento ao usuário. Não desistiremos de lutar para melhorar mesmo o CAPS i, para que crianças hoje de alguma maneira diagnosticadas com diversas síndromes dentro dos transtornos globais do desenvolvimento não sejam amanhã um problema nos  serviços substitutivos para psicóticos como hoje o são, ou o morador do HAA.

O que não me deixaram dizer ontem - geralmente digo para as forças inimigas que não comparecerei  - é que as dificuldades dos CAPS é cumprir as principais funções para que foram criados, substituir o hospital psiquiátrico, que estão bem vivos na rede, com seus leitos como retaguarda, é preciso admitir, e a reinserção social, através da articulação de toda uma rede de atenção ao usuário, por questões estruturais como financiamento, recursos humanos mínimos ( temos um único CAPS i estadual e um só psiquiatra no momento), total falta de prática e inventividade na área da geração de emprego e renda, predominando a mentalidade que o louco é improdutivo. É necessário mais do que abraços nos loucos mansos e cheirosinhos para que a politica nacional de saúde mental se realize neste Piauí.

Mas uma coisa boa da gestão afetiva: espero que alcance a familia Clemente, caso emblemático de uma familia toda de transtornados, que não conseguem se livrar da sujeira dentro de casa. Uma moça que trabalha ao lado, da Gerência trouxe o caso. Só eu averiguei, liguei para os serviços próximos, comprei kit de material de limpeza e mandei por esta moça. Nenhum outra técnica se comoveu de "amor". Vou ligar para Fátima Rosado e falar desta primavera de amor na saúde mental e sugerir para que ela  peça ajuda da gerência.  Aproveitar, porque amor é coisa rara.

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