quinta-feira, 20 de novembro de 2014

MEDICAÇÃO PSIQUIÁTRICA NAS FARMÁRCIAS POPULARES:POR QUE NÂO?

Há algum tempo questiono o fato das "farmácias populares" e farmácia do trabalhador que vende genéricos não ofertarem a medicação psicotrópica. As medicações oferecidas gratuitamente  para asma, diabetes e hipertensão deveriam se estender as pessoas com transtornos mentais.  Nem todas as medicações ou alguma que melhor se ajuste a seu organismo nem sempre tem na rede SUS e se tem, psicóticos não tem nenhuma prioridade em conseguir uma consulta com psiquiatra, a demora longa no atendimento, apenas piora o quadro sintomático. Aliais aqui em Teresina, são pouquíssimos na lista de marcação online.
Quem não é beneficiado por programas sociais porque a família tem renda superior ao exigido pela LOAS, fica no limbo: o preconceito e a discriminação deixa psicóticos fora do mercado de trabalho, somado ao fato de somente o laudo de esquizofrenia é passível de se conseguir um Benefício de Prestação Continuada (BPC). Nem céu e nem inferno e o dinheiro para as medicações, eternamente na família? Nem todo usuário tem perfil de CAPS, que não pode ser ambulatório. Paciente saiu de crise totalmente precisa fazer apenas acompanhamento com um psiquiátrica e psicoterapia se for indicado. Os ambulatórios de hospitais de bairro precisam ser incrementados para receber esta demanda, prestando apoio como saúde básica.
Amanhã preciso comprar meu estabilizador de humor. Não estar disponível na dosagem que uso pela rede SUS. Só me resta pegar nota fiscal, para debitar no imposto de renda.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

SAÚDE MENTAL: QUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

Final de governo Wilson Martins/Zé Filho (PSB/PMDB) já podemos começar um balanço do que deixam na saúde mental do Estado. Esta semana conversava com familiares de usuários do CAPS i, que sentem na pele a má gestão do atendimento infanto - juvenil. Desde 2011 numa reforma de duraria 60 dias e ainda hoje, final de 2014 estão sem local apropriado para atendimentos. Poucos profissionais, poucos psiquiatras. E vamos vendo...

Abaixo excelente entrevista com Roberto Tykanori, coordenador nacional de saúde mental, que nunca deu o ar de sua graça na nossa terrinha quente.

Débora Fogliatto*
Roberto Tykanori é um militante da reforma psiquiátrica desde os anos 1980, quando ainda era estudante de medicina. Após trabalhar em diversos hospitais em Santos e São Paulo, o psiquiatra foi convidado, no início do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) a assumir a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, cargo que ocupa até hoje.
O coordenador esteve em Porto Alegre durante esta semana para o lançamento de um projeto piloto de uma metodologia de avaliação dos serviços em saúde mental. Na ocasião, falou ao Sul21, juntamente com a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, sobre o projeto, a reforma psiquiátrica e medidas para combater o uso de drogas. Ele destacou um programa criado nos Estados Unidos e já testado em São Paulo que fornece moradia e emprego para pessoas em situação de rua dependentes de crack e contou como isso quebrou alguns mitos em relação a esses usuários.
Tykanori afirma que o Ministério da Saúde opera dentro da lógica da reforma psiquiátrica e lamenta que a questão ainda seja polêmica, lembrando que internacionalmente a discussão já está “superada”. “Isso é um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos se organizam em todos os países”, ponderou, afirmando que a internação em hospitais psiquiátricos recentemente foi considerada tortura pela ONU. Leia a entrevista na íntegra:

“A qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos”

Sul21 – O senhor veio para Porto Alegre para ver a aplicabilidade dessa metodologia de avaliação do serviço de saúde mental. Como é este projeto?
Tikanory – Estamos trazendo para o país um método de avaliação de serviços de saúde mental que foi desenvolvido pela Organização Mundia de Saúde (OMS) e em inglês se chama Qualityright, um neologismo juntando as palavras “qualidade” e “direito” em uma palavra única. Isso denota a ideia de que a qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos. Esse instrumento de avaliação foi elaborado em torno da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário e que foi incorporada na Constituição, através de um decreto que transforma ela em uma lei.
Nós ainda não criamos uma boa tradução para Qualityright, precisa ter uma viabilidade de ser compreendida pelas famílias, usuários e profissionais. Nós pretendemos fazer no país um processo de avaliação de serviços em que o protagonismo da avaliação seja dos usuários e seus familiares, associados com profissionais, categorias, representantes da sociedade civil, mas com protagonismo daqueles que têm interesse direto. Ao mesmo tempo, todo processo de avaliação supõe que os critérios sejam consensuados com quem é avaliado. Nossa ideia é que todos os gestores estejam cientes, possam acompanhar e estejam apropriados dos princípios que regem essa avaliação, porque intuito não é qualificar se é bom ou ruim, mas é que essa ferramenta promova um diálogo entre usuários, familiares e gestores de forma que possa ser sempre um processo de qualificação pactuada. Aquilo que se observa a partir do uso do instrumento possa ser apresentado para os gestores e eles pactuem planos de ação dentro do que é possível, em ciclos de atuação. O processo de qualificação não vai estancar, queremos que seja contínuo.
Oficinas de formação da ferramenta Quaityright contam com a participação de trabalhadores, gestores e usuários | Foto: Priscila da Silva/ SES
Oficinas de formação da ferramenta Quaityright contam com a participação de trabalhadores, gestores e usuários | Foto: Priscila da Silva/ SES
Sul21 – E por que começar esse projeto piloto pelo Rio Grande do Sul?
Tikanory – Viemos ao Rio Grande do Sul por várias razões. Entendemos que o estado tem historicamente uma tradição no entendimento das políticas de saúde mental. É um estado com alto nível de alfabetização historicamente, então a capacidade de domínio da linguagem do usuário e do gestor permite uma leitura crítica da semântica e do instrumento, inclusive para possibilitar alternativas linguísticas. Estamos focando aqui por colaboração dos companheiros do Rio Grande do Sul, que mobilizaram e convidaram cinco municípios. São profissionais da rede, associações de familiares e pacientes participando desse processo, além de parceria com quatro universidades do estado que terão papel fundamental na capacitação dos usuários e dos familiares.
Sul21 – A ideia é que se torne uma nova política pública, seja aplicado a todo país?
Tikanory – Estamos planejando que a partir do segundo semestre de 2015 se desencadeie o processo nacional. Não sei se poderemos fazer em todos os estados simultaneamente, mas certamente em algumas regiões do país. Para isso no primeiro semestre faremos o projeto piloto, como os que foram iniciados agora. E os gestores também terão a possibilidade de se auto-aplicarem, começa a se perceber a partir dos critérios que serão usados no futuro. Tem que ficar consensuado que esses itens são legítimos.

“Se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura”

Sul21 – E isso tudo vai ser aplicado em redes de saúde mental, dentro da lógica da reforma psiquiátrica de extinguir os manicômios?
Tikanory – Sim, com certeza. O documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) induz esse processo de reforma do mundo inteiro. Isso é algo concreto, reconhecido, de que serviços como hospitais psiquiátricos onde se tem concentração de pessoas, situações de não-transparência, pessoas ficam fechadas e isoladas são sempre de alto risco de violação de direitos. Agora a relatoria especial de Direitos Humanos da ONU passou a reconhecer isso como crime de tortura. Mundialmente se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura.
Sul21 – A política de saúde mental que é feita no Rio Grande do Sul é um foco de tensão e resistência. Isso é uma situação do estado, ou se evidencia no resto do país? A gente sente isso, um embate diário.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Tikanory – Olha, o processo de transformação da reforma psiquiátrica tem uma tensão histórica. Mas a lei de reforma foi aprovada no governo Fernando Henrique (PSDB), depois de doze anos de debate, quatro legislaturas do Congresso debateram essa lei. Então é um consenso da sociedade, as maiores forças da sociedade debateram e aprovaram. Isso não é pouco porque as pessoas confundem dizendo que a reforma foi feita pelo Partido dos Trabalhadores. Claro que historicamente o PT faz parte disso, mas grandes atores na história eram ligados ao PMDB, no Rio de Janeiro tem muita gente do PDT ligado a isso. A lei foi amalgamada por várias forças da sociedade, embora quem propôs tenha sido do PT. Então acho que as pessoas têm que ter um conhecimento do processo histórico da lei de reforma, que é uma lei realmente suprapartidária.

“Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas”

Sul21 – Atualmente se vê muita oposição por parte de categorias médicas.
Tikanory – Sim, existe resistência maior no setor profissional médico. Dentro desse setor, quem mais resiste não necessariamente são os psiquiatras, mas quem era proprietário de hospitais psiquiátricos. Eles agora não ganham mais dinheiro quanto ganhavam antes, já foi a galinha dos ovos de ouro. E isso não tem a ver com epidemiologia, mas com o processo social. E existem demonstrações claras, Paul Singer nos anos 1970 tem um estudo de que o número de internações corre no inverso do crescimento econômico, temos demonstrações de curvas que se invertem o tempo todo. Particularmente na ditadura isso era muito eficaz, chegamos a ter mais de cem mil pessoas internadas. Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas. Existe um desnível de entendimento, de compreensão sobre o processo da reforma e de interesses. Mas a categoria médica no geral não é necessariamente contra a reforma.
Talvez isso tenha também a ver com o nível de politização e polarização de todos os debates no estado. O que é ruim, porque se polariza certas coisas que não têm sentido. Isso é um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos se organizam em todos os países.
Sul21 – Nos termos de clínicas particulares, também existe essa resistência? Como é o processo de reforma? Tikanory – Aí se inverte, porque no campo privado as coisas são invertidas. As pessoas querem cada vez menos internar, porque se cria uma série de mecanismos para se ter acompanhante terapêutico, enfermeira em casa, isso é individualizado. A questão é que quando se trata de pessoas que “não são filho de alguém” digamos assim, despersonaliza a situação e se pensa como se fosse um método mais simples e lucrativo ficar nos hospitais.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
A reforma propõe um tipo de serviço em que se trabalha muito, o esforço é infinitamente maior e atende-se mais gente do que antes. Em 2002, o SUS fez em torno de 400 mil atendimentos registrados em saúde mental. A partir daí, acelera-se o processo da reforma e em 2010, o SUS realizou 20 milhões de atendimentos. Então em oito anos aumentou 50 vezes o número de atendimentos. A reforma permitiu atingir regiões que nunca tiveram acesso, saímos da orla do país para adentrar , com a interiorização da atenção psiquiátrica. Hoje literalmente temos CAPS do Oiapoque ao Chuí, mas não só. Tem CAPS no Acre, no interior do Amazonas, em locais isolados. Em Roraima eu estive há alguns anos, tinha um psiquiatra que estava de saída. Hoje, tem quase vinte. É surpreendente a oferta que passa a se criar com a reforma.
Sul21 – O senhor tem dados da criação de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e expansão da rede nesse último período?
Tikanory – Atualmente, no Rio Grande do Sul tem 186 CAPS. Quatro anos atrás, eram 139, então são 47 a mais, ou seja, crescimento muito grande. Tem 12 CAPS que são 24 horas. Esses anos todos foi se aprendendo, testando os tamanhos, e percebemos que a potencia do CAPS não está no tamanho, mas na possibilidade de ofertar serviços. Os chamados CAPS 3 são grandes e funcionam 24 horas, mas precisamos também de CAPS pequenos que acolhem pessoas à noite. Essa ideia de que o serviço pode ser um local acolhedor, protetor, que promove ajuda real foi se desenvolvendo. Daqui para frente queremos estimular essa estrutura de ser capaz de acolher, independente do tamanho.
Nacionalmente, temos CAPS nas cidades de acima de 15 mil habitantes, já temos em 67% das mais de duas mil cidades. Mas o Brasil tem também muitas cidades abaixo de 15 mil, por isso é fundamental a noção de região de saúde. Para agregar do ponto de vista de população e de capacidade financeira, de gestão. Nesse sentido, o Estado terminou com os planos regionais e a gente deve estar levando adiante agora para institucionalizar, publicar os planos regionais do Rio Grande do Sul.

“Não tomamos medidas de força para recolher obesos, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam”

Sul21 – Em alguns casos de população em situação de rua,  se diz que o Estado não faz nenhuma busca ativa. Existem casos pontuais de populações que se considera que “causa problemas” e não se tem muita abordagem, ou a nível de segurança. O que a sociedade cobra é como o Estado chega nessas pessoas que têm problemas com drogas. Há preocupação com isso?
Tikanory – Essas situações se tornam, particularmente nas cidades grandes, mais evidentes com as pessoas que estão na rua. Isso era um problema para os gestores, como lidar com isso? Porque, de fato, criamos consultório de rua, que fazem busca ativa. Mas o que acontece é que as pessoas recusam atendimento. Então aí entra um dos debates, que algumas pessoas dizem “então pega a força”.
E entramos na questão de que porque pegamos a pessoa que está na rua e usa drogas e por que não pega a força o obeso que tem um ataque cardíaco, tem que ir para o hospital, não quer se tratar, que nos traz mais custos do que os usuários de crack, por exemplo. Não tomamos medidas de força para recolher essas pessoas, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam. E tem custos isso, se não se tratam vão ter um infarto, ocupar uma UTI, vão ficar sem trabalhar. Mas ninguém quer fazer uma internação compulsória para essas pessoas. Se o que justifica é um estado de doença, existem outros que são muito mais custosos, em quantidade muito maior e nós toleramos. Então não é exatamente esta a questão, porque mesmo que a gente usasse da força, dificilmente mudaria o comportamento.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Sul21 – O que se pode fazer em termos de fornecer tratamento para essa população de rua, já se sabe que formas de abordagem são mais adequadas?
Tikanory – Há alguns anos, nos Estados Unidos, os gestores públicos se enfrentavam com problemas análogos e num certo momento radicalizaram. Perceberam que o que estavam fazendo não funcionava e entenderam que se o problema é que tem pessoas na rua, vamos tirar as pessoas da rua. Porque o que incomoda de verdade não é o estado de doença, é as pessoas estarem na rua. Então criaram programas que tem como objetivo tirar as pessoas da rua. Oferta-se uma casa, uma renda e faz-se um contrato de aluguel. E ele tem que sair da rua, se ele topar assina esse pacto e tem um quarto para morar. Isso começou a ser feito e as pessoas se perguntavam se iam cumprir a palavra. Num primeiro ano, mais de 98% mantém pagando regularmente, pagando aluguel. Em dois anos, 87%. Então os caras saem da rua. Os resultados disso: diminui a violência na rua, os chamados de ambulância, incidência de prontos-socorros. Isso não aumenta o consumo, começou a se observar que as pessoas tendem a aderir o tratamento. Na verdade aquelas pessoas que eram resistentes a um atendimento passaram a aceitar tratamento, após ter um lugar para morar.
Hoje tem estudos mais refinados em relação a esse tipo de abordagem no Canadá que começaram a mostrar indícios de que não só essa população de rua tem uma recuperação tanto quanto tratamento tradicional quanto tem efeito melhor. Essas publicações têm cinco, seis anos e o experimento há mais tempo. Essa ideia de que tendo um teto há um outro padrão de tratamento foi uma descoberta. Parece óbvio, mas não era óbvio. Havia uma certa ideia de meritocracia, de que a pessoa precisaria primeiro se recuperar do vício até ir subindo na escada e ser “merecedor” de uma casa, mas se descobriu que não é assim. Em inglês se chama “Housing First”, ou seja, primeiro a casa.

“Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança”

Sul21 – Esse projeto pode ser aplicado no Brasil?
Tikanory – São Paulo fez isso na crackolândia lá, o prefeito Fernando Haddad fez isso, começando em janeiro. Tirou inicialmente 450 pessoas da rua, chamou elas, perguntou o que precisavam e fez o negócio de sair da rua, garantindo um teto, trabalho e possibilidade de educação. Foi o que eles queriam, e não voltaram para a rua, 85% permanece trabalhando regularmente. Uma boa parte parou de usar drogas e a maioria reduziu muito o consumo. Porque eles pensam que enquanto estão trabalhando, não tem tempo de consumir drogas, depois percebem que se diminuir o consumo conseguem comprar coisas que queriam. Isso dá uma perspectiva de participação do processo. As pessoas a grande maioria consegue se manter e faz o uso racional do dinheiro. Eles ganham R$ 15, o pagamento é semanal.
Beneficiários do programa De Braços Abertos, em São Paulo | Foto: Secom SP
Beneficiários do programa De Braços Abertos, em São Paulo | Foto: Secom SP
Eles dizem que fumavam 20 pedras e hoje fumam 4 ou 5. E com esse dinheiro, as pessoas pensavam que com R$ 15 eles não iam parar de fumar, mas não. O que realmente é o motor é que começam a entrar no circuito de reconhecimento. A prefeitura alugou cinco hotéis em situação irregular, regularizou, chamou os donos dos hotéis e pagou por isso, e alugou os apartamentos para esses usuários, que vão varrer os blocos em volta. O efeito disso é que o comércio local começa a circular, as ruas estão mais limpas, as pessoas têm menos medo. Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança, e oferecem 40 vagas de trabalho para o prefeito. Hoje, deve ter umas 15 pessoas que saíram desse programa e já estão trabalhando de carteira assinada.
O programa se chama De Braços Abertos, que foi um nome que os próprios usuários deram. Cada indivíduo desses custa para a Prefeitura R$ 1100, R$ 450 é o salário e o resto é comida e hotel, por mês. A vantagem desse programa é que isso tira a pessoa da rua, esse dinheiro todo circula na economia local.
Sul21 – E como vocês veem a possibilidade de expandir essa experiência para outros locais do Brasil?
Tikanory – Temos discutido isso no Ministério, como expandir isso. Mas claro que é uma questão concreta de que só o Rio de Janeiro tem uma crackolândia parecida com a de São Paulo, com mais de cem pessoal. Em São Paulo, eram mais de mil pessoas e hoje chegou a um momento crítico, em que depois de dez meses há um novo grupo de pessoas que estão querendo a mesma coisa. E acho que o prefeito vai ter que lidar com isso, se está dando certo vai ter que ver como ampliar.
Ou seja, essas experiências começam a mostrar que existe um patamar mínimo de civilidade sobre o qual as pessoas necessitam para poder andar para frente. Abaixo daquilo, não vale a pena ser civilizado. Quando você cria essa base mínima, que é ter uma casa e uma renda, as pessoas começam a pensar sobre o futuro. Abaixo disso, o esforço é muito para ganhar muito pouco, então ficam à margem do processo de sociabilidade e sociedade. E a grande sacada disso é que custa pouco se a gente for pensar. Sendo bem hipotético, se a gente trancasse todas essas pessoas em uma cadeia ou hospital psiquiátrico, custaria muito mais. E não resolve, porque alguma hora elas voltam para a rua, e não se progrediu nada. O próprio município de São Paulo já criou mais quatro polos para expandir.

“O que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas”

Sul21 – E ninguém ficou chamando de bolsa-crack, bolsa-drogado, essas coisas pejorativas?
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Tikanory – Ah, com certeza, nas primeiras semanas foi bem isso que se ouviu. Mas a questão é que quando as fantasias começaram a cair por terra, isso mudou. A primeira semana foi bem tensa porque eles iam receber R$ 115 na mão, as pessoas achavam que agora eles iam sair queimando muito crack. E daí veio a surpresa, quando perguntaram o que fariam com o dinheiro um homem disse que ia andar de táxi, que nunca tinha andado. Uma mulher disse “vou comprar um shampoo porque o que a prefeitura deu é uma porcaria”. E as coisas básicas, tipo comprar um chinelo para o filho, comprar uma sobremesa. Então é claro que vou pegar um pouco para queimar, mas o que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas.
Então desfaz a ideia de que fumou crack não pensa mais nada, é um zumbi. Não só são racionais, como pensam inclusive na racionalidade do capital. Eles têm percepção das suas necessidades. Porque eles falam “quero casa, quero trabalho e quero estudo”, a quinta coisa que eles falam é queria tratamento de alguma coisa. Isso foi marcante em todos, a quebra de mitos, e a ideia de como as pessoas mudam de comportamento dependendo da sua inserção, mudam de atitude. Muita gente fala que são violentos, desrespeitosos, e assim por diante. Mas aí você muda o contexto eles passam a ser cordiais, passam a ser esforçados, andam de cabeça erguida. É a mesma pessoa, e não teve pílula mágica, uma química mágica, sem remédio. O remédio foi, de certa forma, como o Estado posicionou-se frente a essas pessoas.
Sul21 – Então é a ideia de que se o Estado mudar seu posicionamento frente a essas pessoas, daí sim elas próprias irão mudar, e não vice-versa.
Tikanory – Como o Estado se posicionou de forma que eles se tornassem sujeitos, eles passaram a ser sujeitos. Eu acho que esse é um grande aprendizado, e muda a orientação da política pública, não só pela questão da população de rua, mas pra pensar que todos necessitam de uma base de sociabilidade grande. Na questão da saúde mental, corroboram vários estudos contemporâneos, que dissolveram uma dúvida histórica. Quando eu era estudante havia uma dúvida: será que as condições sociais geram transtorno mental, ou será que o transtorno mental leva as pessoas a perder as condições sociais? Isso não se tinha dados. Hoje em dia tem se claramente que as condições sociais geram transtorno mental. Transtorno gera pobreza sim, mas o vetor maior, é ao contrário. E começa a haver estudos de tentar identificar afinal de contas o que na dita pobreza é tão incisivo.

“Por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?”

Sul21 – A coordenadoria existe há quanto tempo? Sempre esteve preocupada com as questões relacionadas ao consumo de drogas?
Tikanory – A política da questão das drogas aumentou muito no último período. Não só nessa gestão, mas na gestão anterior. No governo Lula, em 2004 já se tornou mais evidente. Por duas razões, uma parte é porque a reforma a partir de 2002 não tinha como foco a questão das drogas. Então o ritmo de crescimento de serviços voltados para pessoas com problemas de drogas e pessoas com transtornos mentais era diferente. Mas também o problema das drogas começou a se tornar mais evidente de uns tempos pra cá. Isso gerou uma distorção da percepção. Hoje se faz uma pesquisa nacionalmente, qualquer lugar que você vai, o pior problema que você tem de saúde, vai se dizer que é crack. Ou seja, as pessoas percebem e sentem isso como problema, embora não seja objetivamente mais significativo do ponto de vista factual. Uma parte acho que diz respeito à exposição midiática, mas a outra parte diz respeito a visibilidade que é o crack. A grande maioria das pessoas consomem crack na rua, em situações muito visíveis.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Nem todo mundo que está na rua usa crack, mas tem uma ligação nessa percepção que vem do seguinte: porque que em um período onde economicamente nós tivemos um crescimento, onde a gente tem uma elevação de dezenas de milhões de pessoas que saem da pobreza, por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?

“Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda”

Sul21 –Sim, essa é uma dúvida que fica. As pessoas subiram de vida no Brasil, mas muita gente ainda mora na rua. Qual a sua hipótese?
Eu comecei a fazer um entendimento do seguinte, é que os processos de promoção, as políticas de promoção social, tiveram efeito extremamente forte de crescimento, mas tem um processo também restritivo. As pessoas que têm menos condições não conseguem subir no bonde do crescimento. Os usuários de crack nas nossas cidades são os jovens e adultos, com baixíssima educação, com muito tempo na rua. Bom, o crack é um dos menores problemas que eles têm. Essas pessoas, com crack ou sem, têm baixíssima empregabilidade, estão há muito tempo fora do circulo institucional. Então essas pessoas tornaram-se visíveis, é um efeito paradoxal do crescimento. Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda. Acho que isso tem um efeito macro social que é a ideia de que aqueles que ascendem querem romper laços com os que ficam pra trás.
Então por isso que essa estratégia do Housing First começa a fazer sentido. Porque são pessoas que se você exigir muito elas não entram. Acho que a questão fundamental é essa, nós estamos tendo que lidar com as dores do crescimento. Isso significa reajustar determinadas percepções sobre os problemas da sociedade hoje. O crack já existia há mais de vinte e tantos anos, então não é uma novidade. A novidade é que gente pobre está usando na rua.
*Colaborou Sinara Sandri
Extraído de:

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

EU SOU LOUCA! SÓ NÃO RASGO DINHEIRO E CONHEÇO MEUS DIREITOS.

Ligando para uma amiga de um local público, onde é extremamente necessário preservar minha identidade secreta,queria um comprimido ansiolítico emprestado, há três dias acabaram os meus, tenho receita, sem tempo de passar em farmárcia: "Amiga, será que dá pra você me emprestar um... " Olhei para aquelas pessoas. Elas não entenderão, então complemento a frase da maneira mais suspeita ainda... " um chazinho daqueles, que nosso médico nos recomenda? Amanhã compro os meus e te devolvo.
Amiga, sem entender nada, retruca: " O de sabor pêssego?" Confusão. Digo que passo em sua casa em 40 minutos. Que constrangimento, se fosse outra doença crônica, ninguém sequer observaria. O estigma e preconceito não mata, mas nos faz sofrer, ciclar, baixar a estima.

A NECESSIDADE URGENTE DE SE FALAR EM SAÚDE MENTAL



Os tabus em torno da saúde mental podem ser desfeitos.
(Keystone)


"Você contrataria alguém que já sofreu de doença mental? Será que você a deixaria tomar conta dos seus filhos? 38% fariam a primeira e apenas 14,2% a segunda, de acordo com um levantamento de atitudes em relação à doença mental, apresentado em Zurique, no início de outubro, na ocasião do lançamento da primeira campanha nacional da Suíça visando os tabus em torno da doença mental. (Veja ao lado)
"Os europeus abriram suas mentes para a doença mental, mas principalmente de um certo nível: eles podem ser a favor de tomar certas medidas em geral, mas no caso de ter realmente que empregar alguém doente mental, isso então torna as coisas diferentes", disse Wulf Rössler, ex-diretor, agora aposentado, do Hospital Psiquiátrico da Universidade de Zurique, que apresentou a visão geral da questão."

Leia mais em:

A EXTRAÇÃO MODERNA DA PEDRA DA LOUCURA!

A lobotomia e o eletrochoque ganham novas aplicações no tratamento de doenças

por


terça-feira, 7 de outubro de 2014

I SEMANA DO AMIGO CUIDADOR

10 DE OUTUBRO: DIA MUNDIAL DA SAÚDE MENTAL
I SEMANA DO AMIGO CUIDADOR


Como Ajudar Alguém em Crise


  • Postado por Marcionilo Laranjeiras, psiquiatra paulista, em 23 fevereiro 2009 
  • ( Apoio em Saúde Mental na Web - página extinta na plataforma NING)

Situação 1: quando a pessoa ainda não está em tratamento

Primeiro
, observe se o familiar, amigo, colega, vizinho ou outra pessoa com chance de ter um transtorno mental. liste os comportamentos disfuncionais.Depois procure conversar um profissional de saúde mental sobre o que você observou.
Investigue discretamente se a pessoa-alvo reconhece em si algum sintoma e se quer ajuda para procurar um tratamento.
Frequentemente uma crise impede uma pessoa de procurar ajuda mesmo sabendo que necessita. No caso de negativas, procure um familiar e converse sobre ela.


Situação 2: Se a pessoa já está em tratamento

Faça
para si as seguintes perguntas: ela está melhorando? ela trata e toma a medicações conforme prescrito? Ajude-o a ir até a consulta (de preferência o acompanhe) e estimule a pessoa a retornar às suas rotinas, mas com parcimônia. A pessoa doente necessita de compreensão, paciência e incentivo. Não espere adequação e nem o peça para "ter força de vontade", pois se dependesse apenas disto e de "pensar positivamente" ele já estaria bem. Evite dar "sermões". Escute mais e fale pouco.


Situação 3: Se existe algum comportamento de risco

Forte desesperança, ideias ou sinais de auto agressão, ou planos de suicídio. Caso observe, não demore. Não queira "dar uma de terapeuta" e não tome decisões sozinho. Não vacile: em caso de recusa do paciente, peça ajuda dos familiares, amigos e colegas e leve-o a um pronto-socorro mais próximo em ambulância, bombeiro ou mesmo polícia. Sem riscos maiores, encaminhe ou, de preferência, acompanhe para uma avaliação com profissional da saúde mental.



Estando em Teresina, além do telefone do Amigo no Ninho, ao lado há todos ou os mais importantes endereços dos serviços públicos em saúde mental e dependência química de Teresina. 

sábado, 4 de outubro de 2014

PSIQUIATRIA: CIÊNCIA MÉDICA INEXATA?

O Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), principal financiador de pesquisas na área do país, abandonou oficialmente o DSM-5 (o novo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), apenas duas semanas antes do seu lançamento.
Segundo comunicado escrito por seu presidente Thomas Inse e publicado no site do Instituto (http://migre.me/eoT9G), o NIMH irá "re-orientar sua pesquisa para longe de categorias do DSM. Daqui para frente iremos apoiar projetos de pesquisa que olhem além das categorias atuais - ou que subdividam as categorias atuais - para que se comece a desenvolver um sistema melhor".
O texto critica a validade do DSM-5 e afirma: "Pacientes com transtornos mentais merecem algo melhor".
Como afirma o blog Mind Hacks, esta atitude do NIMH é potencialmente sísmica e abala fortemente o poder da Associação Psiquiátrica Americana e do DSM-5. Entenda melhor a situação no link abaixo:  
Felipe Stephan 


  Rede Humaniza SUS


A Psiquiatria é a primeira especialização da Medicina, ciência experimental sempre e inexata. Não irei descrever  as "tecnologias de cuidado", dos mais desumanos e degradantes possíveis desde seu nascimento moderno no século XIX, a esperança de cura com a descoberta dos psicofármacos no final dos anos cinquenta. A classificação aproximada das doenças mentais (nosologia ) bem ou mal deve-se ao manual dos americanos, com ou sem a influência de suas multinacionais indústrias de remédios, pelo menos a divulgação que banalizou, deixou mais comum e mais fácil o acesso, a aceitação e a busca de ajuda especializada. Doença mental não é mito, e claro que não concordamos que a maioria dos comportamentos humanos sejam tomados como patológicos. Mas como ficamos nós diagnosticados há anos, sobreviventes de hospitais psiquiátricos, recém diagnosticados ainda no luto? Buscando compreender uma crise psicótica que está passando, dificuldade de aderir a tratamentos medicamentosos que realmente em momentos de total sujeição e humilhação da condição psicótica, foram cruciais para estabilidade dos sintomas bastante senão dolorosos, mas bastante sofríveis.
Terça-feira passada (02) ouvia duas mocinhas no ônibus falando de uma terceira, de sua personalidade difícil e tal. De repente, categoricamente a mais severa nas críticas a colega ausente afirma: "Fulana é uma bipolar!", com o ar de desprezo total por este "mal". Intervenho e pergunto-lhe o que é ser bipolar. Ela prontamente me responde que são pessoas que tem dois caracteres. Duas personalidades. Suspirei e lhes respondi que a amiga delas precisava de um psiquiatra e de apoio, porque como ainda prefiro a PSICOSE MANÍACA DEPRESSIVA ( apenas pensei, usei mesmo o termo bipolar) leva 98% de pessoas que a tem ao suicídio numa crise aguda, sem tratamento adequado. É uma doença grave, não deve ser glamorizada ou proscrita como mal crônico "terrível".
Hoje, sábado (4) me encontro em uma crise leve, saindo de uma sessão de quiropraxia e acupuntura auricular, medicada mas com oscilações de "desesperos mentais" com frequência mínima de 30 a 50 minutos de uma ocorrência para outra. Mantendo-me a custo, funcional e resolutiva, olhando revistas em uma banca de jornal, quando um rapaz de menos de 30 anos talvez, malhado, de aparência atlética e saudável, menos o olhar distímico, pergunta ao dono do local o que há sobre Síndrome do Pânico. Nada... é a resposta. Intervenho, e indico a leitura do blog, dos links de sites informativos e digo-lhe para procurar Transtornos de Ansiedade, então ele encontrará a subclassificação, síndrome do pânico, o rapaz poderia está buscando informações sobre este transtorno mental para ele mesmo ou para compreender o comportamento de uma pessoa em crise. Credito essa vulgarização de informações positiva... e se de repente tudo está errado, pesquisadores financiados pela indústria farmacêutica inventaram diagnósticos falsos para vender remédios que não curam a verdadeira doença. Coitados de nós usuários!
É necessário regular a qualidade e eficiência, com o mínimo de efeitos colaterais dos psicofármacos, retirar alguns de linha talvez, como se faz em outras especializações da medicina. Somente a condenação brutal, a rejeição sem a crítica mais científica, como se a loucura fosse mesmo apenas mais uma forma de se viver a subjetividade humana, é uma romantização da mesma, seu elogio é irresponsabilidade. As pessoas adoecem mentalmente de um sofrimento mortal, como apontam as alarmantes estatísticas de suicídio mundo afora, atingindo todas as classes sociais, idades e gêneros.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

MILITÂNCIA NA SAÚDE MENTAL DO PIAUÍ

Acompanhando os vários Processos Administrativos  (PA) que movimentamos no Ministério Público

Nos cartórios eleitorais buscando informações sobre restrição ou não do voto do psicótico. Ninguém entendeu nada. Deram-me o site do TRE.


"Sócia" bem recebida, quando falta medicação na rede. Verificando as causas, antes de acionar o MP.

Como a senhora Incrível recomenda, a identidade protegida é fundamental. O óculos escuro máscara! Aos leitores que nunca comentam minhas postagens, continuem assim: nada de comentários sobre minhas displicentes gordurinhas. Infelizmente, ando num processo de falta de auto cuidado, normal, não é?

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

SAÚDE MENTAL OU MEDICALIZAÇÃO DA VIDA VIA FARMACOLOGIA




allen-frances
Allen Frances
Allen Frances (Nova York, 1942) dirigiu durante anos o Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), documento que define e descreve as diferentes doenças mentais. Esse manual, considerado a bíblia dos psiquiatras, é revisado periodicamente para ser adaptado aos avanços do conhecimento científico. Frances dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV, ao qual se seguiu uma quinta revisão que ampliou enormemente o número de transtornos patológicos. Em seu livro Saving Normal (inédito no Brasil), ele faz uma autocrítica e questiona o fato de a principal referência acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente medicalização da vida.
Pergunta. No livro, o senhor faz um mea culpa, mas é ainda mais duro com o trabalho de seus colegas do DSM V. Por quê?
Resposta. Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM IV] dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação.
P. Seremos todos considerados doentes mentais?
R. Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais.
P. Com a colaboração da indústria farmacêutica...
R. É óbvio. Graças àqueles que lhes permitiram fazer publicidade de seus produtos, os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos. Mas não é assim. Os fármacos são necessários e muito úteis em transtornos mentais severos e persistentes, que provocam uma grande incapacidade. Mas não ajudam nos problemas cotidianos, pelo contrário: o excesso de medicação causa mais danos que benefícios. Não existe tratamento mágico contra o mal-estar.
P. O que propõe para frear essa tendência?
R. Controlar melhor a indústria e educar de novo os médicos e a sociedade, que aceita de forma muito acrítica as facilidades oferecidas para se medicar, o que está provocando além do mais a aparição de um perigosíssimo mercado clandestino de fármacos psiquiátricos. Em meu país, 30% dos estudantes universitários e 10% dos do ensino médio compram fármacos no mercado ilegal. Há um tipo de narcótico que cria muita dependência e pode dar lugar a casos de overdose e morte. Atualmente, já há mais mortes por abuso de medicamentos do que por consumo de drogas.
P. Em 2009, um estudo realizado na Holanda concluiu que 34% das crianças entre 5 e 15 anos eram tratadas por hiperatividade e déficit de atenção. É crível que uma em cada três crianças seja hiperativa?
R. Claro que não. A incidência real está em torno de 2% a 3% da população infantil e, entretanto, 11% das crianças nos EUA estão diagnosticadas como tal e, no caso dos adolescentes homens, 20%, sendo que metade é tratada com fármacos. Outro dado surpreendente: entre as crianças em tratamento, mais de 10.000 têm menos de três anos! Isso é algo selvagem, desumano. Os melhores especialistas, aqueles que honestamente ajudaram a definir a patologia, estão horrorizados. Perdeu-se o controle.
P. E há tanta síndrome de Asperger como indicam as estatísticas sobre tratamentos psiquiátricos?
R. Esse foi um dos dois novos transtornos que incorporamos no DSM IV, e em pouco tempo o diagnóstico de autismo se triplicou. O mesmo ocorreu com a hiperatividade. Calculamos que, com os novos critérios, os diagnósticos aumentariam em 15%, mas houve uma mudança brusca a partir de 1997, quando os laboratórios lançaram no mercado fármacos novos e muito caros, e além disso puderam fazer publicidade. O diagnóstico se multiplicou por 40.
P. A influência dos laboratórios é evidente, mas um psiquiatra dificilmente prescreverá psicoestimulantes a uma criança sem pais angustiados que corram para o seu consultório, porque a professora disse que a criança não progride adequadamente, e eles temem que ela perca oportunidades de competir na vida. Até que ponto esses fatores culturais influenciam?
R. Sobre isto tenho três coisas a dizer. Primeiro, não há evidência em longo prazo de que a medicação contribua para melhorar os resultados escolares. Em curto prazo, pode acalmar a criança, inclusive ajudá-la a se concentrar melhor em suas tarefas. Mas em longo prazo esses benefícios não foram demonstrados. Segundo: estamos fazendo um experimento em grande escala com essas crianças, porque não sabemos que efeitos adversos esses fármacos podem ter com o passar do tempo. Assim como não nos ocorre receitar testosterona a uma criança para que renda mais no futebol, tampouco faz sentido tentar melhorar o rendimento escolar com fármacos. Terceiro: temos de aceitar que há diferenças entre as crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais protejam seus filhos, mas do excesso de medicação.
P. Na medicalização da vida, não influi também a cultura hedonista que busca o bem-estar a qualquer preço?
R. Os seres humanos são criaturas muito maleáveis. Sobrevivemos há milhões de anos graças a essa capacidade de confrontar a adversidade e nos sobrepor a ela. Agora mesmo, no Iraque ou na Síria, a vida pode ser um inferno. E entretanto as pessoas lutam para sobreviver. Se vivermos imersos em uma cultura que lança mão dos comprimidos diante de qualquer problema, vai se reduzir a nossa capacidade de confrontar o estresse e também a segurança em nós mesmos. Se esse comportamento se generalizar, a sociedade inteira se debilitará frente à adversidade. Além disso, quando tratamos um processo banal como se fosse uma enfermidade, diminuímos a dignidade de quem verdadeiramente a sofre.
P. E ser rotulado como alguém que sofre um transtorno mental não tem consequências também?
R. Muitas, e de fato a cada semana recebo emails de pais cujos filhos foram diagnosticados com um transtorno mental e estão desesperados por causa do preconceito que esse rótulo acarreta. É muito fácil fazer um diagnóstico errôneo, mas muito difícil reverter os danos que isso causa. Tanto no social como pelos efeitos adversos que o tratamento pode ter. Felizmente, está crescendo uma corrente crítica em relação a essas práticas. O próximo passo é conscientizar as pessoas de que remédio demais faz mal para a saúde.
P. Não vai ser fácil…
R. Certo, mas a mudança cultural é possível. Temos um exemplo magnífico: há 25 anos, nos EUA, 65% da população fumava. Agora, são menos de 20%. É um dos maiores avanços em saúde da história recente, e foi conseguido por uma mudança cultural. As fábricas de cigarro gastavam enormes somas de dinheiro para desinformar. O mesmo que ocorre agora com certos medicamentos psiquiátricos. Custou muito deslanchar as evidências científicas sobre o tabaco, mas, quando se conseguiu, a mudança foi muito rápida.
P. Nos últimos anos as autoridades sanitárias tomaram medidas para reduzir a pressão dos laboratórios sobre os médicos. Mas agora se deram conta de que podem influenciar o médico gerando demandas nos pacientes.
R. Há estudos que demonstram que, quando um paciente pede um medicamento, há 20 vezes mais possibilidades de ele ser prescrito do que se a decisão coubesse apenas ao médico. Na Austrália, alguns laboratórios exigiam pessoas de muito boa aparência para o cargo de visitador médico, porque haviam comprovado que gente bonita entrava com mais facilidade nos consultórios. A esse ponto chegamos. Agora temos de trabalhar para obter uma mudança de atitude nas pessoas.
P. Em que sentido?
R. Que em vez de ir ao médico em busca da pílula mágica para algo tenhamos uma atitude mais precavida. Que o normal seja que o paciente interrogue o médico cada vez que este receita algo. Perguntar por que prescreve, que benefícios traz, que efeitos adversos causará, se há outras alternativas. Se o paciente mostrar uma atitude resistente, é mais provável que os fármacos receitados a ele sejam justificados.
P. E também será preciso mudar hábitos.
R. Sim, e deixe-me lhe dizer um problema que observei. É preciso mudar os hábitos de sono! Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso provoca ansiedade e irritabilidade. Jantar às 22h e ir dormir à meia-noite ou à 1h fazia sentido quando vocês faziam a sesta. O cérebro elimina toxinas à noite. Quem dorme pouco tem problemas, tanto físicos como psíquicos.

El País

Extraído de:

PsiBr 

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PSIQUIATRIA SEM HOSPÍCIO

POR UMA CLÍNICA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM SUBJETIVIDADE, MEDICAÇÃO COM MENOS EFEITOS COLATERAIS E MAIOR PODER DE RESOLUTIVIDADE ASSOCIADA A PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES.