Final de governo Wilson Martins/Zé Filho (PSB/PMDB) já podemos começar um balanço do que deixam na saúde mental do Estado. Esta semana conversava com familiares de usuários do CAPS i, que sentem na pele a má gestão do atendimento infanto - juvenil. Desde 2011 numa reforma de duraria 60 dias e ainda hoje, final de 2014 estão sem local apropriado para atendimentos. Poucos profissionais, poucos psiquiatras. E vamos vendo...
Abaixo excelente entrevista com Roberto Tykanori, coordenador nacional de saúde mental, que nunca deu o ar de sua graça na nossa terrinha quente.
Débora Fogliatto*
Roberto Tykanori é um militante da reforma psiquiátrica desde os anos
1980, quando ainda era estudante de medicina. Após trabalhar em
diversos hospitais em Santos e São Paulo, o psiquiatra foi convidado, no
início do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) a assumir a
Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério
da Saúde, cargo que ocupa até hoje.
O coordenador esteve em Porto Alegre durante esta semana para o
lançamento de um projeto piloto de uma metodologia de avaliação dos
serviços em saúde mental. Na ocasião, falou ao Sul21,
juntamente com a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, sobre o
projeto, a reforma psiquiátrica e medidas para combater o uso de drogas.
Ele destacou um programa criado nos Estados Unidos e já testado em São
Paulo que fornece moradia e emprego para pessoas em situação de rua
dependentes de crack e contou como isso quebrou alguns mitos em relação a
esses usuários.
Tykanori afirma que o Ministério da Saúde opera dentro da lógica da
reforma psiquiátrica e lamenta que a questão ainda seja polêmica,
lembrando que internacionalmente a discussão já está “superada”. “Isso é
um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros
acadêmicos se organizam em todos os países”, ponderou, afirmando que a
internação em hospitais psiquiátricos recentemente foi considerada
tortura pela ONU. Leia a entrevista na íntegra:
“A qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos”
Sul21 – O senhor veio para Porto Alegre para ver a
aplicabilidade dessa metodologia de avaliação do serviço de saúde
mental. Como é este projeto?
Tikanory – Estamos trazendo para o país um método de
avaliação de serviços de saúde mental que foi desenvolvido pela
Organização Mundia de Saúde (OMS) e em inglês se chama Qualityright,
um neologismo juntando as palavras “qualidade” e “direito” em uma
palavra única. Isso denota a ideia de que a qualidade dos serviços de
saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos
humanos. Esse instrumento de avaliação foi elaborado em torno da
Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é
signatário e que foi incorporada na Constituição, através de um decreto
que transforma ela em uma lei.
Nós ainda não criamos uma boa tradução para Qualityright,
precisa ter uma viabilidade de ser compreendida pelas famílias, usuários
e profissionais. Nós pretendemos fazer no país um processo de avaliação
de serviços em que o protagonismo da avaliação seja dos usuários e seus
familiares, associados com profissionais, categorias, representantes da
sociedade civil, mas com protagonismo daqueles que têm interesse
direto. Ao mesmo tempo, todo processo de avaliação supõe que os
critérios sejam consensuados com quem é avaliado. Nossa ideia é que
todos os gestores estejam cientes, possam acompanhar e estejam
apropriados dos princípios que regem essa avaliação, porque intuito não é
qualificar se é bom ou ruim, mas é que essa ferramenta promova um
diálogo entre usuários, familiares e gestores de forma que possa ser
sempre um processo de qualificação pactuada. Aquilo que se observa a
partir do uso do instrumento possa ser apresentado para os gestores e
eles pactuem planos de ação dentro do que é possível, em ciclos de
atuação. O processo de qualificação não vai estancar, queremos que seja
contínuo.
Sul21 – E por que começar esse projeto piloto pelo Rio Grande do Sul?
Tikanory – Viemos ao Rio Grande do Sul por várias
razões. Entendemos que o estado tem historicamente uma tradição no
entendimento das políticas de saúde mental. É um estado com alto nível
de alfabetização historicamente, então a capacidade de domínio da
linguagem do usuário e do gestor permite uma leitura crítica da
semântica e do instrumento, inclusive para possibilitar alternativas
linguísticas. Estamos focando aqui por colaboração dos companheiros do
Rio Grande do Sul, que mobilizaram e convidaram cinco municípios. São
profissionais da rede, associações de familiares e pacientes
participando desse processo, além de parceria com quatro universidades
do estado que terão papel fundamental na capacitação dos usuários e dos
familiares.
Sul21 – A ideia é que se torne uma nova política pública, seja aplicado a todo país?
Tikanory – Estamos planejando que a partir do
segundo semestre de 2015 se desencadeie o processo nacional. Não sei se
poderemos fazer em todos os estados simultaneamente, mas certamente em
algumas regiões do país. Para isso no primeiro semestre faremos o
projeto piloto, como os que foram iniciados agora. E os gestores também
terão a possibilidade de se auto-aplicarem, começa a se perceber a
partir dos critérios que serão usados no futuro. Tem que ficar
consensuado que esses itens são legítimos.
“Se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura”
Sul21 – E isso tudo vai ser aplicado em redes de saúde
mental, dentro da lógica da reforma psiquiátrica de extinguir os
manicômios?
Tikanory – Sim, com certeza. O documento da
Organização Mundial da Saúde (OMS) induz esse processo de reforma do
mundo inteiro. Isso é algo concreto, reconhecido, de que serviços como
hospitais psiquiátricos onde se tem concentração de pessoas, situações
de não-transparência, pessoas ficam fechadas e isoladas são sempre de
alto risco de violação de direitos. Agora a relatoria especial de
Direitos Humanos da ONU passou a reconhecer isso como crime de tortura.
Mundialmente se começa a ter essa ideia de que as instituições totais –
instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a
poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura.
Sul21 – A política de saúde mental que é feita no Rio Grande
do Sul é um foco de tensão e resistência. Isso é uma situação do estado,
ou se evidencia no resto do país? A gente sente isso, um embate diário.
Tikanory – Olha, o processo de transformação da
reforma psiquiátrica tem uma tensão histórica. Mas a lei de reforma foi
aprovada no governo Fernando Henrique (PSDB), depois de doze anos de
debate, quatro legislaturas do Congresso debateram essa lei. Então é um
consenso da sociedade, as maiores forças da sociedade debateram e
aprovaram. Isso não é pouco porque as pessoas confundem dizendo que a
reforma foi feita pelo Partido dos Trabalhadores. Claro que
historicamente o PT faz parte disso, mas grandes atores na história eram
ligados ao PMDB, no Rio de Janeiro tem muita gente do PDT ligado a
isso. A lei foi amalgamada por várias forças da sociedade, embora quem
propôs tenha sido do PT. Então acho que as pessoas têm que ter um
conhecimento do processo histórico da lei de reforma, que é uma lei
realmente suprapartidária.
“Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas”
Sul21 – Atualmente se vê muita oposição por parte de categorias médicas.
Tikanory – Sim, existe resistência maior no setor
profissional médico. Dentro desse setor, quem mais resiste não
necessariamente são os psiquiatras, mas quem era proprietário de
hospitais psiquiátricos. Eles agora não ganham mais dinheiro quanto
ganhavam antes, já foi a galinha dos ovos de ouro. E isso não tem a ver
com epidemiologia, mas com o processo social. E existem demonstrações
claras, Paul Singer nos anos 1970 tem um estudo de que o número de
internações corre no inverso do crescimento econômico, temos
demonstrações de curvas que se invertem o tempo todo. Particularmente na
ditadura isso era muito eficaz, chegamos a ter mais de cem mil pessoas
internadas. Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas
sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus
problemas. Existe um desnível de entendimento, de compreensão sobre o
processo da reforma e de interesses. Mas a categoria médica no geral não
é necessariamente contra a reforma.
Talvez isso tenha também a ver com o nível de politização e
polarização de todos os debates no estado. O que é ruim, porque se
polariza certas coisas que não têm sentido. Isso é um debate
mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos
se organizam em todos os países.
Sul21 – Nos termos de clínicas particulares, também existe essa resistência? Como é o processo de reforma?
Tikanory – Aí se inverte, porque no campo privado as
coisas são invertidas. As pessoas querem cada vez menos internar, porque
se cria uma série de mecanismos para se ter acompanhante terapêutico,
enfermeira em casa, isso é individualizado. A questão é que quando se
trata de pessoas que “não são filho de alguém” digamos assim,
despersonaliza a situação e se pensa como se fosse um método mais
simples e lucrativo ficar nos hospitais.
A reforma propõe um tipo de serviço em que se trabalha muito, o
esforço é infinitamente maior e atende-se mais gente do que antes. Em
2002, o SUS fez em torno de 400 mil atendimentos registrados em saúde
mental. A partir daí, acelera-se o processo da reforma e em 2010, o SUS
realizou 20 milhões de atendimentos. Então em oito anos aumentou 50
vezes o número de atendimentos. A reforma permitiu atingir regiões que
nunca tiveram acesso, saímos da orla do país para adentrar , com a
interiorização da atenção psiquiátrica. Hoje literalmente temos CAPS do
Oiapoque ao Chuí, mas não só. Tem CAPS no Acre, no interior do Amazonas,
em locais isolados. Em Roraima eu estive há alguns anos, tinha um
psiquiatra que estava de saída. Hoje, tem quase vinte. É surpreendente a
oferta que passa a se criar com a reforma.
Sul21 – O senhor tem dados da criação de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e expansão da rede nesse último período?
Tikanory – Atualmente, no Rio Grande do Sul tem 186
CAPS. Quatro anos atrás, eram 139, então são 47 a mais, ou seja,
crescimento muito grande. Tem 12 CAPS que são 24 horas. Esses anos todos
foi se aprendendo, testando os tamanhos, e percebemos que a potencia do
CAPS não está no tamanho, mas na possibilidade de ofertar serviços. Os
chamados CAPS 3 são grandes e funcionam 24 horas, mas precisamos também
de CAPS pequenos que acolhem pessoas à noite. Essa ideia de que o
serviço pode ser um local acolhedor, protetor, que promove ajuda real
foi se desenvolvendo. Daqui para frente queremos estimular essa
estrutura de ser capaz de acolher, independente do tamanho.
Nacionalmente, temos CAPS nas cidades de acima de 15 mil habitantes,
já temos em 67% das mais de duas mil cidades. Mas o Brasil tem também
muitas cidades abaixo de 15 mil, por isso é fundamental a noção de
região de saúde. Para agregar do ponto de vista de população e de
capacidade financeira, de gestão. Nesse sentido, o Estado terminou com
os planos regionais e a gente deve estar levando adiante agora para
institucionalizar, publicar os planos regionais do Rio Grande do Sul.
“Não tomamos medidas de força para recolher obesos, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam”
Sul21 – Em alguns casos de população em situação de rua, se
diz que o Estado não faz nenhuma busca ativa. Existem casos pontuais de
populações que se considera que “causa problemas” e não se tem muita
abordagem, ou a nível de segurança. O que a sociedade cobra é como o
Estado chega nessas pessoas que têm problemas com drogas. Há preocupação
com isso?
Tikanory – Essas situações se tornam,
particularmente nas cidades grandes, mais evidentes com as pessoas que
estão na rua. Isso era um problema para os gestores, como lidar com
isso? Porque, de fato, criamos consultório de rua, que fazem busca
ativa. Mas o que acontece é que as pessoas recusam atendimento. Então aí
entra um dos debates, que algumas pessoas dizem “então pega a força”.
E entramos na questão de que porque pegamos a pessoa que está na rua e
usa drogas e por que não pega a força o obeso que tem um ataque
cardíaco, tem que ir para o hospital, não quer se tratar, que nos traz
mais custos do que os usuários de crack, por exemplo. Não tomamos
medidas de força para recolher essas pessoas, ou para recolher
diabéticos, hipertensos que não se cuidam. E tem custos isso, se não se
tratam vão ter um infarto, ocupar uma UTI, vão ficar sem trabalhar. Mas
ninguém quer fazer uma internação compulsória para essas pessoas. Se o
que justifica é um estado de doença, existem outros que são muito mais
custosos, em quantidade muito maior e nós toleramos. Então não é
exatamente esta a questão, porque mesmo que a gente usasse da força,
dificilmente mudaria o comportamento.
Sul21 – O que se pode fazer em termos de fornecer tratamento
para essa população de rua, já se sabe que formas de abordagem são mais
adequadas?
Tikanory – Há alguns anos, nos Estados Unidos, os
gestores públicos se enfrentavam com problemas análogos e num certo
momento radicalizaram. Perceberam que o que estavam fazendo não
funcionava e entenderam que se o problema é que tem pessoas na rua,
vamos tirar as pessoas da rua. Porque o que incomoda de verdade não é o
estado de doença, é as pessoas estarem na rua. Então criaram programas
que tem como objetivo tirar as pessoas da rua. Oferta-se uma casa, uma
renda e faz-se um contrato de aluguel. E ele tem que sair da rua, se ele
topar assina esse pacto e tem um quarto para morar. Isso começou a ser
feito e as pessoas se perguntavam se iam cumprir a palavra. Num primeiro
ano, mais de 98% mantém pagando regularmente, pagando aluguel. Em dois
anos, 87%. Então os caras saem da rua. Os resultados disso: diminui a
violência na rua, os chamados de ambulância, incidência de
prontos-socorros. Isso não aumenta o consumo, começou a se observar que
as pessoas tendem a aderir o tratamento. Na verdade aquelas pessoas que
eram resistentes a um atendimento passaram a aceitar tratamento, após
ter um lugar para morar.
Hoje tem estudos mais refinados em relação a esse tipo de abordagem
no Canadá que começaram a mostrar indícios de que não só essa população
de rua tem uma recuperação tanto quanto tratamento tradicional quanto
tem efeito melhor. Essas publicações têm cinco, seis anos e o
experimento há mais tempo. Essa ideia de que tendo um teto há um outro
padrão de tratamento foi uma descoberta. Parece óbvio, mas não era
óbvio. Havia uma certa ideia de meritocracia, de que a pessoa precisaria
primeiro se recuperar do vício até ir subindo na escada e ser
“merecedor” de uma casa, mas se descobriu que não é assim. Em inglês se
chama “Housing First”, ou seja, primeiro a casa.
“Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança”
Sul21 – Esse projeto pode ser aplicado no Brasil?
Tikanory – São Paulo fez isso na crackolândia lá, o
prefeito Fernando Haddad fez isso, começando em janeiro. Tirou
inicialmente 450 pessoas da rua, chamou elas, perguntou o que precisavam
e fez o negócio de sair da rua, garantindo um teto, trabalho e
possibilidade de educação. Foi o que eles queriam, e não voltaram para a
rua, 85% permanece trabalhando regularmente. Uma boa parte parou de
usar drogas e a maioria reduziu muito o consumo. Porque eles pensam que
enquanto estão trabalhando, não tem tempo de consumir drogas, depois
percebem que se diminuir o consumo conseguem comprar coisas que queriam.
Isso dá uma perspectiva de participação do processo. As pessoas a
grande maioria consegue se manter e faz o uso racional do dinheiro. Eles
ganham R$ 15, o pagamento é semanal.
Eles dizem que fumavam 20 pedras e hoje fumam 4 ou 5. E com esse
dinheiro, as pessoas pensavam que com R$ 15 eles não iam parar de fumar,
mas não. O que realmente é o motor é que começam a entrar no circuito
de reconhecimento. A prefeitura alugou cinco hotéis em situação
irregular, regularizou, chamou os donos dos hotéis e pagou por isso, e
alugou os apartamentos para esses usuários, que vão varrer os blocos em
volta. O efeito disso é que o comércio local começa a circular, as ruas
estão mais limpas, as pessoas têm menos medo. Quem tinha medo de descer
começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários
aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança, e
oferecem 40 vagas de trabalho para o prefeito. Hoje, deve ter umas 15
pessoas que saíram desse programa e já estão trabalhando de carteira
assinada.
O programa se chama De Braços Abertos, que foi um nome que os
próprios usuários deram. Cada indivíduo desses custa para a Prefeitura
R$ 1100, R$ 450 é o salário e o resto é comida e hotel, por mês. A
vantagem desse programa é que isso tira a pessoa da rua, esse dinheiro
todo circula na economia local.
Sul21 – E como vocês veem a possibilidade de expandir essa experiência para outros locais do Brasil?
Tikanory – Temos discutido isso no Ministério, como
expandir isso. Mas claro que é uma questão concreta de que só o Rio de
Janeiro tem uma crackolândia parecida com a de São Paulo, com mais de
cem pessoal. Em São Paulo, eram mais de mil pessoas e hoje chegou a um
momento crítico, em que depois de dez meses há um novo grupo de pessoas
que estão querendo a mesma coisa. E acho que o prefeito vai ter que
lidar com isso, se está dando certo vai ter que ver como ampliar.
Ou seja, essas experiências começam a mostrar que existe um patamar
mínimo de civilidade sobre o qual as pessoas necessitam para poder andar
para frente. Abaixo daquilo, não vale a pena ser civilizado. Quando
você cria essa base mínima, que é ter uma casa e uma renda, as pessoas
começam a pensar sobre o futuro. Abaixo disso, o esforço é muito para
ganhar muito pouco, então ficam à margem do processo de sociabilidade e
sociedade. E a grande sacada disso é que custa pouco se a gente for
pensar. Sendo bem hipotético, se a gente trancasse todas essas pessoas
em uma cadeia ou hospital psiquiátrico, custaria muito mais. E não
resolve, porque alguma hora elas voltam para a rua, e não se progrediu
nada. O próprio município de São Paulo já criou mais quatro polos para
expandir.
“O que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas”
Sul21 – E ninguém ficou chamando de bolsa-crack, bolsa-drogado, essas coisas pejorativas?
Tikanory – Ah, com certeza, nas primeiras semanas
foi bem isso que se ouviu. Mas a questão é que quando as fantasias
começaram a cair por terra, isso mudou. A primeira semana foi bem tensa
porque eles iam receber R$ 115 na mão, as pessoas achavam que agora eles
iam sair queimando muito crack. E daí veio a surpresa, quando
perguntaram o que fariam com o dinheiro um homem disse que ia andar de
táxi, que nunca tinha andado. Uma mulher disse “vou comprar um shampoo
porque o que a prefeitura deu é uma porcaria”. E as coisas básicas, tipo
comprar um chinelo para o filho, comprar uma sobremesa. Então é claro
que vou pegar um pouco para queimar, mas o que é interessante é que se
imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem
percepção dos seus problemas.
Então desfaz a ideia de que fumou crack não pensa mais nada, é um
zumbi. Não só são racionais, como pensam inclusive na racionalidade do
capital. Eles têm percepção das suas necessidades. Porque eles falam
“quero casa, quero trabalho e quero estudo”, a quinta coisa que eles
falam é queria tratamento de alguma coisa. Isso foi marcante em todos, a
quebra de mitos, e a ideia de como as pessoas mudam de comportamento
dependendo da sua inserção, mudam de atitude. Muita gente fala que são
violentos, desrespeitosos, e assim por diante. Mas aí você muda o
contexto eles passam a ser cordiais, passam a ser esforçados, andam de
cabeça erguida. É a mesma pessoa, e não teve pílula mágica, uma química
mágica, sem remédio. O remédio foi, de certa forma, como o Estado
posicionou-se frente a essas pessoas.
Sul21 – Então é a ideia de que se o Estado mudar seu
posicionamento frente a essas pessoas, daí sim elas próprias irão mudar,
e não vice-versa.
Tikanory – Como o Estado se posicionou de forma que
eles se tornassem sujeitos, eles passaram a ser sujeitos. Eu acho que
esse é um grande aprendizado, e muda a orientação da política pública,
não só pela questão da população de rua, mas pra pensar que todos
necessitam de uma base de sociabilidade grande. Na questão da saúde
mental, corroboram vários estudos contemporâneos, que dissolveram uma
dúvida histórica. Quando eu era estudante havia uma dúvida: será que as
condições sociais geram transtorno mental, ou será que o transtorno
mental leva as pessoas a perder as condições sociais? Isso não se tinha
dados. Hoje em dia tem se claramente que as condições sociais geram
transtorno mental. Transtorno gera pobreza sim, mas o vetor maior, é ao
contrário. E começa a haver estudos de tentar identificar afinal de
contas o que na dita pobreza é tão incisivo.
“Por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?”
Sul21 – A coordenadoria existe há quanto tempo? Sempre esteve preocupada com as questões relacionadas ao consumo de drogas?
Tikanory – A política da questão das drogas aumentou
muito no último período. Não só nessa gestão, mas na gestão anterior.
No governo Lula, em 2004 já se tornou mais evidente. Por duas razões,
uma parte é porque a reforma a partir de 2002 não tinha como foco a
questão das drogas. Então o ritmo de crescimento de serviços voltados
para pessoas com problemas de drogas e pessoas com transtornos mentais
era diferente. Mas também o problema das drogas começou a se tornar mais
evidente de uns tempos pra cá. Isso gerou uma distorção da percepção.
Hoje se faz uma pesquisa nacionalmente, qualquer lugar que você vai, o
pior problema que você tem de saúde, vai se dizer que é crack. Ou seja,
as pessoas percebem e sentem isso como problema, embora não seja
objetivamente mais significativo do ponto de vista factual. Uma parte
acho que diz respeito à exposição midiática, mas a outra parte diz
respeito a visibilidade que é o crack. A grande maioria das pessoas
consomem crack na rua, em situações muito visíveis.
Nem todo mundo que está na rua usa crack, mas tem uma ligação nessa
percepção que vem do seguinte: porque que em um período onde
economicamente nós tivemos um crescimento, onde a gente tem uma elevação
de dezenas de milhões de pessoas que saem da pobreza, por que que tem
um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que
essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na
rua?
“Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda”
Sul21 –Sim, essa é uma dúvida que fica. As pessoas subiram de
vida no Brasil, mas muita gente ainda mora na rua. Qual a sua hipótese?
Eu comecei a fazer um entendimento do seguinte, é que os processos de
promoção, as políticas de promoção social, tiveram efeito extremamente
forte de crescimento, mas tem um processo também restritivo. As pessoas
que têm menos condições não conseguem subir no bonde do crescimento. Os
usuários de crack nas nossas cidades são os jovens e adultos, com
baixíssima educação, com muito tempo na rua. Bom, o crack é um dos
menores problemas que eles têm. Essas pessoas, com crack ou sem, têm
baixíssima empregabilidade, estão há muito tempo fora do circulo
institucional. Então essas pessoas tornaram-se visíveis, é um efeito
paradoxal do crescimento. Quem tinha as condições foi atingido pelas
políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda. Acho
que isso tem um efeito macro social que é a ideia de que aqueles que
ascendem querem romper laços com os que ficam pra trás.
Então por isso que essa estratégia do Housing First começa a
fazer sentido. Porque são pessoas que se você exigir muito elas não
entram. Acho que a questão fundamental é essa, nós estamos tendo que
lidar com as dores do crescimento. Isso significa reajustar determinadas
percepções sobre os problemas da sociedade hoje. O crack já existia há
mais de vinte e tantos anos, então não é uma novidade. A novidade é que
gente pobre está usando na rua.
*Colaborou Sinara Sandri
Extraído de:
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