segunda-feira, 17 de novembro de 2014

SAÚDE MENTAL: QUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

Final de governo Wilson Martins/Zé Filho (PSB/PMDB) já podemos começar um balanço do que deixam na saúde mental do Estado. Esta semana conversava com familiares de usuários do CAPS i, que sentem na pele a má gestão do atendimento infanto - juvenil. Desde 2011 numa reforma de duraria 60 dias e ainda hoje, final de 2014 estão sem local apropriado para atendimentos. Poucos profissionais, poucos psiquiatras. E vamos vendo...

Abaixo excelente entrevista com Roberto Tykanori, coordenador nacional de saúde mental, que nunca deu o ar de sua graça na nossa terrinha quente.

Débora Fogliatto*
Roberto Tykanori é um militante da reforma psiquiátrica desde os anos 1980, quando ainda era estudante de medicina. Após trabalhar em diversos hospitais em Santos e São Paulo, o psiquiatra foi convidado, no início do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) a assumir a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, cargo que ocupa até hoje.
O coordenador esteve em Porto Alegre durante esta semana para o lançamento de um projeto piloto de uma metodologia de avaliação dos serviços em saúde mental. Na ocasião, falou ao Sul21, juntamente com a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, sobre o projeto, a reforma psiquiátrica e medidas para combater o uso de drogas. Ele destacou um programa criado nos Estados Unidos e já testado em São Paulo que fornece moradia e emprego para pessoas em situação de rua dependentes de crack e contou como isso quebrou alguns mitos em relação a esses usuários.
Tykanori afirma que o Ministério da Saúde opera dentro da lógica da reforma psiquiátrica e lamenta que a questão ainda seja polêmica, lembrando que internacionalmente a discussão já está “superada”. “Isso é um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos se organizam em todos os países”, ponderou, afirmando que a internação em hospitais psiquiátricos recentemente foi considerada tortura pela ONU. Leia a entrevista na íntegra:

“A qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos”

Sul21 – O senhor veio para Porto Alegre para ver a aplicabilidade dessa metodologia de avaliação do serviço de saúde mental. Como é este projeto?
Tikanory – Estamos trazendo para o país um método de avaliação de serviços de saúde mental que foi desenvolvido pela Organização Mundia de Saúde (OMS) e em inglês se chama Qualityright, um neologismo juntando as palavras “qualidade” e “direito” em uma palavra única. Isso denota a ideia de que a qualidade dos serviços de saúde mental está ligada à questão da promoção e respeito aos direitos humanos. Esse instrumento de avaliação foi elaborado em torno da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário e que foi incorporada na Constituição, através de um decreto que transforma ela em uma lei.
Nós ainda não criamos uma boa tradução para Qualityright, precisa ter uma viabilidade de ser compreendida pelas famílias, usuários e profissionais. Nós pretendemos fazer no país um processo de avaliação de serviços em que o protagonismo da avaliação seja dos usuários e seus familiares, associados com profissionais, categorias, representantes da sociedade civil, mas com protagonismo daqueles que têm interesse direto. Ao mesmo tempo, todo processo de avaliação supõe que os critérios sejam consensuados com quem é avaliado. Nossa ideia é que todos os gestores estejam cientes, possam acompanhar e estejam apropriados dos princípios que regem essa avaliação, porque intuito não é qualificar se é bom ou ruim, mas é que essa ferramenta promova um diálogo entre usuários, familiares e gestores de forma que possa ser sempre um processo de qualificação pactuada. Aquilo que se observa a partir do uso do instrumento possa ser apresentado para os gestores e eles pactuem planos de ação dentro do que é possível, em ciclos de atuação. O processo de qualificação não vai estancar, queremos que seja contínuo.
Oficinas de formação da ferramenta Quaityright contam com a participação de trabalhadores, gestores e usuários | Foto: Priscila da Silva/ SES
Oficinas de formação da ferramenta Quaityright contam com a participação de trabalhadores, gestores e usuários | Foto: Priscila da Silva/ SES
Sul21 – E por que começar esse projeto piloto pelo Rio Grande do Sul?
Tikanory – Viemos ao Rio Grande do Sul por várias razões. Entendemos que o estado tem historicamente uma tradição no entendimento das políticas de saúde mental. É um estado com alto nível de alfabetização historicamente, então a capacidade de domínio da linguagem do usuário e do gestor permite uma leitura crítica da semântica e do instrumento, inclusive para possibilitar alternativas linguísticas. Estamos focando aqui por colaboração dos companheiros do Rio Grande do Sul, que mobilizaram e convidaram cinco municípios. São profissionais da rede, associações de familiares e pacientes participando desse processo, além de parceria com quatro universidades do estado que terão papel fundamental na capacitação dos usuários e dos familiares.
Sul21 – A ideia é que se torne uma nova política pública, seja aplicado a todo país?
Tikanory – Estamos planejando que a partir do segundo semestre de 2015 se desencadeie o processo nacional. Não sei se poderemos fazer em todos os estados simultaneamente, mas certamente em algumas regiões do país. Para isso no primeiro semestre faremos o projeto piloto, como os que foram iniciados agora. E os gestores também terão a possibilidade de se auto-aplicarem, começa a se perceber a partir dos critérios que serão usados no futuro. Tem que ficar consensuado que esses itens são legítimos.

“Se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura”

Sul21 – E isso tudo vai ser aplicado em redes de saúde mental, dentro da lógica da reforma psiquiátrica de extinguir os manicômios?
Tikanory – Sim, com certeza. O documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) induz esse processo de reforma do mundo inteiro. Isso é algo concreto, reconhecido, de que serviços como hospitais psiquiátricos onde se tem concentração de pessoas, situações de não-transparência, pessoas ficam fechadas e isoladas são sempre de alto risco de violação de direitos. Agora a relatoria especial de Direitos Humanos da ONU passou a reconhecer isso como crime de tortura. Mundialmente se começa a ter essa ideia de que as instituições totais – instituições de isolamento, fechadas em que pessoas estão submetidas a poderes muito assimétricos – são de alto risco de violação e tortura.
Sul21 – A política de saúde mental que é feita no Rio Grande do Sul é um foco de tensão e resistência. Isso é uma situação do estado, ou se evidencia no resto do país? A gente sente isso, um embate diário.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Tikanory – Olha, o processo de transformação da reforma psiquiátrica tem uma tensão histórica. Mas a lei de reforma foi aprovada no governo Fernando Henrique (PSDB), depois de doze anos de debate, quatro legislaturas do Congresso debateram essa lei. Então é um consenso da sociedade, as maiores forças da sociedade debateram e aprovaram. Isso não é pouco porque as pessoas confundem dizendo que a reforma foi feita pelo Partido dos Trabalhadores. Claro que historicamente o PT faz parte disso, mas grandes atores na história eram ligados ao PMDB, no Rio de Janeiro tem muita gente do PDT ligado a isso. A lei foi amalgamada por várias forças da sociedade, embora quem propôs tenha sido do PT. Então acho que as pessoas têm que ter um conhecimento do processo histórico da lei de reforma, que é uma lei realmente suprapartidária.

“Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas”

Sul21 – Atualmente se vê muita oposição por parte de categorias médicas.
Tikanory – Sim, existe resistência maior no setor profissional médico. Dentro desse setor, quem mais resiste não necessariamente são os psiquiatras, mas quem era proprietário de hospitais psiquiátricos. Eles agora não ganham mais dinheiro quanto ganhavam antes, já foi a galinha dos ovos de ouro. E isso não tem a ver com epidemiologia, mas com o processo social. E existem demonstrações claras, Paul Singer nos anos 1970 tem um estudo de que o número de internações corre no inverso do crescimento econômico, temos demonstrações de curvas que se invertem o tempo todo. Particularmente na ditadura isso era muito eficaz, chegamos a ter mais de cem mil pessoas internadas. Estamos falando de uma outra forma de lidar com os problemas sociais, ou seja, é uma reforma que muda como a sociedade lida com seus problemas. Existe um desnível de entendimento, de compreensão sobre o processo da reforma e de interesses. Mas a categoria médica no geral não é necessariamente contra a reforma.
Talvez isso tenha também a ver com o nível de politização e polarização de todos os debates no estado. O que é ruim, porque se polariza certas coisas que não têm sentido. Isso é um debate mundialmente superado, a OMS tem isso como superado, inúmeros acadêmicos se organizam em todos os países.
Sul21 – Nos termos de clínicas particulares, também existe essa resistência? Como é o processo de reforma? Tikanory – Aí se inverte, porque no campo privado as coisas são invertidas. As pessoas querem cada vez menos internar, porque se cria uma série de mecanismos para se ter acompanhante terapêutico, enfermeira em casa, isso é individualizado. A questão é que quando se trata de pessoas que “não são filho de alguém” digamos assim, despersonaliza a situação e se pensa como se fosse um método mais simples e lucrativo ficar nos hospitais.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
A reforma propõe um tipo de serviço em que se trabalha muito, o esforço é infinitamente maior e atende-se mais gente do que antes. Em 2002, o SUS fez em torno de 400 mil atendimentos registrados em saúde mental. A partir daí, acelera-se o processo da reforma e em 2010, o SUS realizou 20 milhões de atendimentos. Então em oito anos aumentou 50 vezes o número de atendimentos. A reforma permitiu atingir regiões que nunca tiveram acesso, saímos da orla do país para adentrar , com a interiorização da atenção psiquiátrica. Hoje literalmente temos CAPS do Oiapoque ao Chuí, mas não só. Tem CAPS no Acre, no interior do Amazonas, em locais isolados. Em Roraima eu estive há alguns anos, tinha um psiquiatra que estava de saída. Hoje, tem quase vinte. É surpreendente a oferta que passa a se criar com a reforma.
Sul21 – O senhor tem dados da criação de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e expansão da rede nesse último período?
Tikanory – Atualmente, no Rio Grande do Sul tem 186 CAPS. Quatro anos atrás, eram 139, então são 47 a mais, ou seja, crescimento muito grande. Tem 12 CAPS que são 24 horas. Esses anos todos foi se aprendendo, testando os tamanhos, e percebemos que a potencia do CAPS não está no tamanho, mas na possibilidade de ofertar serviços. Os chamados CAPS 3 são grandes e funcionam 24 horas, mas precisamos também de CAPS pequenos que acolhem pessoas à noite. Essa ideia de que o serviço pode ser um local acolhedor, protetor, que promove ajuda real foi se desenvolvendo. Daqui para frente queremos estimular essa estrutura de ser capaz de acolher, independente do tamanho.
Nacionalmente, temos CAPS nas cidades de acima de 15 mil habitantes, já temos em 67% das mais de duas mil cidades. Mas o Brasil tem também muitas cidades abaixo de 15 mil, por isso é fundamental a noção de região de saúde. Para agregar do ponto de vista de população e de capacidade financeira, de gestão. Nesse sentido, o Estado terminou com os planos regionais e a gente deve estar levando adiante agora para institucionalizar, publicar os planos regionais do Rio Grande do Sul.

“Não tomamos medidas de força para recolher obesos, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam”

Sul21 – Em alguns casos de população em situação de rua,  se diz que o Estado não faz nenhuma busca ativa. Existem casos pontuais de populações que se considera que “causa problemas” e não se tem muita abordagem, ou a nível de segurança. O que a sociedade cobra é como o Estado chega nessas pessoas que têm problemas com drogas. Há preocupação com isso?
Tikanory – Essas situações se tornam, particularmente nas cidades grandes, mais evidentes com as pessoas que estão na rua. Isso era um problema para os gestores, como lidar com isso? Porque, de fato, criamos consultório de rua, que fazem busca ativa. Mas o que acontece é que as pessoas recusam atendimento. Então aí entra um dos debates, que algumas pessoas dizem “então pega a força”.
E entramos na questão de que porque pegamos a pessoa que está na rua e usa drogas e por que não pega a força o obeso que tem um ataque cardíaco, tem que ir para o hospital, não quer se tratar, que nos traz mais custos do que os usuários de crack, por exemplo. Não tomamos medidas de força para recolher essas pessoas, ou para recolher diabéticos, hipertensos que não se cuidam. E tem custos isso, se não se tratam vão ter um infarto, ocupar uma UTI, vão ficar sem trabalhar. Mas ninguém quer fazer uma internação compulsória para essas pessoas. Se o que justifica é um estado de doença, existem outros que são muito mais custosos, em quantidade muito maior e nós toleramos. Então não é exatamente esta a questão, porque mesmo que a gente usasse da força, dificilmente mudaria o comportamento.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Sul21 – O que se pode fazer em termos de fornecer tratamento para essa população de rua, já se sabe que formas de abordagem são mais adequadas?
Tikanory – Há alguns anos, nos Estados Unidos, os gestores públicos se enfrentavam com problemas análogos e num certo momento radicalizaram. Perceberam que o que estavam fazendo não funcionava e entenderam que se o problema é que tem pessoas na rua, vamos tirar as pessoas da rua. Porque o que incomoda de verdade não é o estado de doença, é as pessoas estarem na rua. Então criaram programas que tem como objetivo tirar as pessoas da rua. Oferta-se uma casa, uma renda e faz-se um contrato de aluguel. E ele tem que sair da rua, se ele topar assina esse pacto e tem um quarto para morar. Isso começou a ser feito e as pessoas se perguntavam se iam cumprir a palavra. Num primeiro ano, mais de 98% mantém pagando regularmente, pagando aluguel. Em dois anos, 87%. Então os caras saem da rua. Os resultados disso: diminui a violência na rua, os chamados de ambulância, incidência de prontos-socorros. Isso não aumenta o consumo, começou a se observar que as pessoas tendem a aderir o tratamento. Na verdade aquelas pessoas que eram resistentes a um atendimento passaram a aceitar tratamento, após ter um lugar para morar.
Hoje tem estudos mais refinados em relação a esse tipo de abordagem no Canadá que começaram a mostrar indícios de que não só essa população de rua tem uma recuperação tanto quanto tratamento tradicional quanto tem efeito melhor. Essas publicações têm cinco, seis anos e o experimento há mais tempo. Essa ideia de que tendo um teto há um outro padrão de tratamento foi uma descoberta. Parece óbvio, mas não era óbvio. Havia uma certa ideia de meritocracia, de que a pessoa precisaria primeiro se recuperar do vício até ir subindo na escada e ser “merecedor” de uma casa, mas se descobriu que não é assim. Em inglês se chama “Housing First”, ou seja, primeiro a casa.

“Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança”

Sul21 – Esse projeto pode ser aplicado no Brasil?
Tikanory – São Paulo fez isso na crackolândia lá, o prefeito Fernando Haddad fez isso, começando em janeiro. Tirou inicialmente 450 pessoas da rua, chamou elas, perguntou o que precisavam e fez o negócio de sair da rua, garantindo um teto, trabalho e possibilidade de educação. Foi o que eles queriam, e não voltaram para a rua, 85% permanece trabalhando regularmente. Uma boa parte parou de usar drogas e a maioria reduziu muito o consumo. Porque eles pensam que enquanto estão trabalhando, não tem tempo de consumir drogas, depois percebem que se diminuir o consumo conseguem comprar coisas que queriam. Isso dá uma perspectiva de participação do processo. As pessoas a grande maioria consegue se manter e faz o uso racional do dinheiro. Eles ganham R$ 15, o pagamento é semanal.
Beneficiários do programa De Braços Abertos, em São Paulo | Foto: Secom SP
Beneficiários do programa De Braços Abertos, em São Paulo | Foto: Secom SP
Eles dizem que fumavam 20 pedras e hoje fumam 4 ou 5. E com esse dinheiro, as pessoas pensavam que com R$ 15 eles não iam parar de fumar, mas não. O que realmente é o motor é que começam a entrar no circuito de reconhecimento. A prefeitura alugou cinco hotéis em situação irregular, regularizou, chamou os donos dos hotéis e pagou por isso, e alugou os apartamentos para esses usuários, que vão varrer os blocos em volta. O efeito disso é que o comércio local começa a circular, as ruas estão mais limpas, as pessoas têm menos medo. Quem tinha medo de descer começa a circular nas calçadas. Depois de quatro meses, empresários aprenderam que era mais barato dar emprego do que contratar segurança, e oferecem 40 vagas de trabalho para o prefeito. Hoje, deve ter umas 15 pessoas que saíram desse programa e já estão trabalhando de carteira assinada.
O programa se chama De Braços Abertos, que foi um nome que os próprios usuários deram. Cada indivíduo desses custa para a Prefeitura R$ 1100, R$ 450 é o salário e o resto é comida e hotel, por mês. A vantagem desse programa é que isso tira a pessoa da rua, esse dinheiro todo circula na economia local.
Sul21 – E como vocês veem a possibilidade de expandir essa experiência para outros locais do Brasil?
Tikanory – Temos discutido isso no Ministério, como expandir isso. Mas claro que é uma questão concreta de que só o Rio de Janeiro tem uma crackolândia parecida com a de São Paulo, com mais de cem pessoal. Em São Paulo, eram mais de mil pessoas e hoje chegou a um momento crítico, em que depois de dez meses há um novo grupo de pessoas que estão querendo a mesma coisa. E acho que o prefeito vai ter que lidar com isso, se está dando certo vai ter que ver como ampliar.
Ou seja, essas experiências começam a mostrar que existe um patamar mínimo de civilidade sobre o qual as pessoas necessitam para poder andar para frente. Abaixo daquilo, não vale a pena ser civilizado. Quando você cria essa base mínima, que é ter uma casa e uma renda, as pessoas começam a pensar sobre o futuro. Abaixo disso, o esforço é muito para ganhar muito pouco, então ficam à margem do processo de sociabilidade e sociedade. E a grande sacada disso é que custa pouco se a gente for pensar. Sendo bem hipotético, se a gente trancasse todas essas pessoas em uma cadeia ou hospital psiquiátrico, custaria muito mais. E não resolve, porque alguma hora elas voltam para a rua, e não se progrediu nada. O próprio município de São Paulo já criou mais quatro polos para expandir.

“O que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas”

Sul21 – E ninguém ficou chamando de bolsa-crack, bolsa-drogado, essas coisas pejorativas?
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Tikanory – Ah, com certeza, nas primeiras semanas foi bem isso que se ouviu. Mas a questão é que quando as fantasias começaram a cair por terra, isso mudou. A primeira semana foi bem tensa porque eles iam receber R$ 115 na mão, as pessoas achavam que agora eles iam sair queimando muito crack. E daí veio a surpresa, quando perguntaram o que fariam com o dinheiro um homem disse que ia andar de táxi, que nunca tinha andado. Uma mulher disse “vou comprar um shampoo porque o que a prefeitura deu é uma porcaria”. E as coisas básicas, tipo comprar um chinelo para o filho, comprar uma sobremesa. Então é claro que vou pegar um pouco para queimar, mas o que é interessante é que se imaginava que uma pessoa viciada em crack não tem racionalidade, nem percepção dos seus problemas.
Então desfaz a ideia de que fumou crack não pensa mais nada, é um zumbi. Não só são racionais, como pensam inclusive na racionalidade do capital. Eles têm percepção das suas necessidades. Porque eles falam “quero casa, quero trabalho e quero estudo”, a quinta coisa que eles falam é queria tratamento de alguma coisa. Isso foi marcante em todos, a quebra de mitos, e a ideia de como as pessoas mudam de comportamento dependendo da sua inserção, mudam de atitude. Muita gente fala que são violentos, desrespeitosos, e assim por diante. Mas aí você muda o contexto eles passam a ser cordiais, passam a ser esforçados, andam de cabeça erguida. É a mesma pessoa, e não teve pílula mágica, uma química mágica, sem remédio. O remédio foi, de certa forma, como o Estado posicionou-se frente a essas pessoas.
Sul21 – Então é a ideia de que se o Estado mudar seu posicionamento frente a essas pessoas, daí sim elas próprias irão mudar, e não vice-versa.
Tikanory – Como o Estado se posicionou de forma que eles se tornassem sujeitos, eles passaram a ser sujeitos. Eu acho que esse é um grande aprendizado, e muda a orientação da política pública, não só pela questão da população de rua, mas pra pensar que todos necessitam de uma base de sociabilidade grande. Na questão da saúde mental, corroboram vários estudos contemporâneos, que dissolveram uma dúvida histórica. Quando eu era estudante havia uma dúvida: será que as condições sociais geram transtorno mental, ou será que o transtorno mental leva as pessoas a perder as condições sociais? Isso não se tinha dados. Hoje em dia tem se claramente que as condições sociais geram transtorno mental. Transtorno gera pobreza sim, mas o vetor maior, é ao contrário. E começa a haver estudos de tentar identificar afinal de contas o que na dita pobreza é tão incisivo.

“Por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?”

Sul21 – A coordenadoria existe há quanto tempo? Sempre esteve preocupada com as questões relacionadas ao consumo de drogas?
Tikanory – A política da questão das drogas aumentou muito no último período. Não só nessa gestão, mas na gestão anterior. No governo Lula, em 2004 já se tornou mais evidente. Por duas razões, uma parte é porque a reforma a partir de 2002 não tinha como foco a questão das drogas. Então o ritmo de crescimento de serviços voltados para pessoas com problemas de drogas e pessoas com transtornos mentais era diferente. Mas também o problema das drogas começou a se tornar mais evidente de uns tempos pra cá. Isso gerou uma distorção da percepção. Hoje se faz uma pesquisa nacionalmente, qualquer lugar que você vai, o pior problema que você tem de saúde, vai se dizer que é crack. Ou seja, as pessoas percebem e sentem isso como problema, embora não seja objetivamente mais significativo do ponto de vista factual. Uma parte acho que diz respeito à exposição midiática, mas a outra parte diz respeito a visibilidade que é o crack. A grande maioria das pessoas consomem crack na rua, em situações muito visíveis.
 | Foto: Priscila da Silva/SES-RS
| Foto: Priscila da Silva/SES-RS
Nem todo mundo que está na rua usa crack, mas tem uma ligação nessa percepção que vem do seguinte: porque que em um período onde economicamente nós tivemos um crescimento, onde a gente tem uma elevação de dezenas de milhões de pessoas que saem da pobreza, por que que tem um monte de gente que está na rua e usa crack? A pergunta é por que essas pessoas não entraram no bonde do crescimento, mas continuam na rua?

“Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda”

Sul21 –Sim, essa é uma dúvida que fica. As pessoas subiram de vida no Brasil, mas muita gente ainda mora na rua. Qual a sua hipótese?
Eu comecei a fazer um entendimento do seguinte, é que os processos de promoção, as políticas de promoção social, tiveram efeito extremamente forte de crescimento, mas tem um processo também restritivo. As pessoas que têm menos condições não conseguem subir no bonde do crescimento. Os usuários de crack nas nossas cidades são os jovens e adultos, com baixíssima educação, com muito tempo na rua. Bom, o crack é um dos menores problemas que eles têm. Essas pessoas, com crack ou sem, têm baixíssima empregabilidade, estão há muito tempo fora do circulo institucional. Então essas pessoas tornaram-se visíveis, é um efeito paradoxal do crescimento. Quem tinha as condições foi atingido pelas políticas, agora quem não tinha nenhuma, ficou mais de fora ainda. Acho que isso tem um efeito macro social que é a ideia de que aqueles que ascendem querem romper laços com os que ficam pra trás.
Então por isso que essa estratégia do Housing First começa a fazer sentido. Porque são pessoas que se você exigir muito elas não entram. Acho que a questão fundamental é essa, nós estamos tendo que lidar com as dores do crescimento. Isso significa reajustar determinadas percepções sobre os problemas da sociedade hoje. O crack já existia há mais de vinte e tantos anos, então não é uma novidade. A novidade é que gente pobre está usando na rua.
*Colaborou Sinara Sandri
Extraído de:

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