quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

TRANSIÇÃO DE GOVERNO E REFORMA PSIQUIÁTRICA

Gostaria de convidar a todos os companheiros que militam no campo antimanicomial e pela continuidade do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, para acompanharem com atenção o processo de transição que está ocorrendo no novo governo Dilma, particulamente na montagem da nova gestão no Ministério da Saúde.
Como militante histórico destes movimentos, e mais recentemente, como um dos dois relatores da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial (IV CNSM-I), venho observando de perto e com cuidado os vários desafios e riscos políticos para nossas lutas. No ano passado, procurei sistematizar minha análise no pequeno livro “Desafios políticos da reforma psiquiátrica brasileira”, por mim organizado, e publicado pela Editora Hucitec, por ocasião da IV CNSM-I. Neste livro, alguns dos temas e inquietações já tinham sido identificados, mas agora, ganham novos desdobramentos, e posso dizer que continuo preocupado com o quadro que se descortina no novo governo.  Assim, gostaria de dividir esta análise com vocês, meus companheiros de luta.
 É claro que temos que reconhecer que vários desafios e riscos maiores já foram superados, com muitos passos e conquistas importantes: a vitória sobre o candidato Serra pela coalisão liderada pelo PT, com Dilma Rousssef, e após a vitória dela, os inúmeros nomes elencados como possíveis ministros da saúde que poderiam ser complicados para uma gestão política mais adequada do ministério, do SUS e da política de saúde mental. Não há dúvidas de que, em tese, a montagem do primeiro e segundo escalão do Ministério da Saúde nos deixou inicialmente mais tranqüilos. Entretanto, para mim, esta primeira impressão ainda não foi suficiente para afastar todos os riscos que temos nesta transição, e que merecem nosso acompanhamento cuidadoso. Gostaria de listar as minhas principais fontes de preocupação:

1) O tema da política de enfrentamento ao crack continua “quente” e pautado por anseios de medidas mais contundentes, estigmatizadoras e autoritárias, e vem contaminando a avaliação mais geral da política de saúde mental efetivada nos últimos anos, como se tivesse sido frágil e débil.

Para quem é informado apenas pela mídia comum, ficou a sensação de que após a forte cobertura do tema do crack realizada até meados do ano passado, a nova política nacional de álcool e outras drogas emanada pelo Ministério da Saúde e SENAD foram suficientes para dar uma resposta suficiente às inúmeras forças políticas que se organizaram em torno do assunto, dado que ele não teve mais tanta visibilidade nos principais meios de comunicação. No entanto, o impacto político do assunto dentro no governo Lula foi imenso, pouco divulgado, e há fortes indícios de que estas forças, que incluem amplas frentes parlamentares e vários setores da gestão federal, particularmente das áreas de segurança e justiça, não ficaram satisfeitas. Além disso, a vitória inicial na ocupação militar do Complexo do Alemão estimula os anseios para medidas cirúrgicas e de caráter policial. Os indícios que temos é de que o novo governo é muito sensível a estes temas de forte repercussão popular e na mídia (lembrem-se de como o tema do aborto foi traumático na campanha eleitoral de Dilma), o que pode gerar demandas de respostas pretensamente mais eficazes e mais imediatistas no combate ao crack. Uma das hipóteses conhecidas e inclusive praticada até mesmo em alguns países que estão implementando a reforma psiquiátrica, seria separar institucional e programaticamente, dentro do campo da saúde, as áreas de álcool e drogas da área da saúde mental, o que seria um retrocesso em relação ao que conquistamos nos últimos 10 anos no Brasil.
Por outro lado, estes anseios incidem sobre a avaliação do conjunto da política e da gestão no campo da saúde mental, como se tivesse sido débil, frágil, e incapaz de responder aos “anseios mais urgentes da sociedade brasileira”. Como testemunha privilegiada, inclusive pela participação intensa em Brasília na organização da IV CNSA-I e posteriormente na construção de seu relatório final, a avaliação que faço da gestão de nossa política de saúde mental nos últimos anos, e particularmente em 2010, vai na direção contrária. Sugiro aos companheiros dar uma olhada na Mensagem Circular n.o 62, de 30/12/2010 (colocado como anexo logo abaixo), que lista as novas iniciativas do novo programa de álcool e drogas, para ter uma idéia do vasto campo de respostas que está se implementando. Além disto, sugiro também passar o olho no Boletim Saúde Mental n.o 30 (anexo a este e-mail), recentemente divulgado pelo Ministério, que faz um balanço de toda a política nacional de saúde mental em 2010. Este ano foi duríssimo para todos os envolvidos, no sentido de garantir a organização da IV CNSM-I, em condições bastante desfavoráveis, e ao mesmo tempo não só gerar a nova política de álcool e outras drogas, como também manter a expansão dos serviços substitutivos de saúde mental.
Assim, caberá ao movimento antimanicomial e de reforma psiquiátrica neste momento dar visibilidade e defender este patrimônio, que é de todos nós, como realizações importantes de uma política adequada para o campo e que deverá ter continuidade, apesar de todas as limitações colocadas pela conjuntura econômica e social mais ampla.
Embora esteja consciente de que o movimento antimanicomial esteja dividido, inclusive em relação a esta avaliação da gestão até então, não tenho dúvidas de hoje temos adversários maiores, e que precisamos neste momento saber identificá-los para garantir a continuidade de nossa luta mais ampla e estratégica.
Além disso, cabe a nós cerrar fileiras em torno de uma política de álcool e outras drogas integrada com o campo da saúde mental, e coerente com nossos princípios antimanicomiais, contrários a programas e medidas autoritárias, imediatistas e que priorizam a internação de longo prazo de usuários de drogas, de forma desintegrada com uma rede de atenção psicossocial na comunidade, capaz de gerar novos caminhos de vida para eles.

2) A plena ocupação do primeiro e segundo escalão do Ministério da Saúde por lideranças reconhecidas do movimento sanitário e do PT, em troca de uma gestão que era da “quota do PMDB” e com vários de seus representantes em cargos importantes do ministério, significa um movimento à esquerda, no sentido de radicalizar a implementação efetiva do SUS. No entanto, ainda assim, esta transição gera alguma incerteza política em áreas específicas, inclusive no campo da saúde mental e da reforma psiquiátrica.

Neste processo de transição, houve um movimento muito saudável no sentido de uma plena ocupação do Ministério da Saúde e de estabelecer uma gestão que não seja uma continuidade da anterior, no sentido de garantir uma política mais coerente com a concepção e princípios do SUS. Entretanto, este movimento pode, em tese, e em associação com os desafios e processos listados neste texto, gerar alguma incerteza sobre a gestão da política de saúde mental. Por exemplo, se houver uma identificação indiferenciada das políticas e programas específicos encaminhados até então, incluindo a de saúde mental, com a gestão anterior, isso pode induzir a anseios de uma direção política completamente nova em cada área, incluindo em saúde mental, sem dar a devida consideração às conquistas e especificidades de cada uma delas.
Cabe a nós, do movimento antimanicomial e de reforma psiquiátrica, mostrar que a Coordenação e a política de Saúde Mental, embora fosse institucionalmente subordinada ao ministério, vem sendo pautada principalmente por um movimento social popular vivo e muito ativo, e por políticas emanadas por 4 conferências nacionais específicas de peso.

3) Há resistências dentro do próprio movimento sanitário mais amplo em relação à organização própria da saúde mental dentro do campo mais amplo da saúde, como fosse apenas uma especialidade ou fruto de anseios corporativistas da área.

É importante lembrar que o Conselho Nacional de Saúde já tinha decidido por uma posição contrária à realização de qualquer conferência específica dentro da saúde, e que a IV CNSM-I foi conquistada apenas após a Marcha dos Usuários em setembro de 2009. Assim, há resistências ao campo e à política de saúde mental levada até então, até mesmo entre nossos companheiros sanitaristas.
Para nós, do movimento antimanicomial, cabe demonstrar então aquilo que a IV CNSM-I deixou claro: o campo da saúde mental e da reforma psiquiátrica não se trata apenas de uma especialidade dentro da saúde em geral, mas de um campo que atravessa todo o campo da saúde e das políticas intersetoriais que se mobilizam junto conosco. Além disso, a saúde mental é protagonista e vanguarda de inúmeros movimentos e processos inovadores que inspiram todo este campo de políticas sociais: desinstitucionalização, interdisciplinaridade, integralidade, intersetorialidade, humanização, gestão participativa de serviços, empoderamento de usuários e familiares, acompanhamento da política de Estado por um movimento social ativo e crítico, etc.

4) As forças corporativistas e privativistas do campo médico e da psiquiatria biomédica sofreram apenas um pequeno revés temporário com a derrota de José Serra, e continuam ativas e com forte pressão sobre as forças aliadas que sustentam o novo governo, inclusive em seus anseios de reverter a política de saúde mental levada até então.

Não tenho dúvidas de que as forças políticas mais conservadoras do campo médico continuam suas ações de lobby sobre o conjunto de partidos aliados, parlamentares e em várias áreas do novo governo. Por outro lado, a Associação
Brasileira de Psiquiatria elegeu recentemente uma nova diretoria, ainda mais conservadora e contrária à política de reforma psiquiátrica. Assim, em um momento de transição, este tipo de pressão, se associado às demandas das demais forças e processos políticos identificados acima, pode ser capaz de provocar incerteza política quanto à continuidade da atual política de saúde mental.

* * *

Assim, companheiros, para além das primeiras impressões, a conjuntura imediata exige muita atenção e um acompanhamento cuidadoso, de perto. Por favor, divulguem este texto, tomando-o apenas como um alerta, e façam comentários e críticas. O importante é convocar a todos para ficarmos atentos aos sinais que emanam do presente processo de transição no novo governo, para garantir a continuidade do processo de reforma psiquiátrica em nosso país.

Rio de Janeiro, 06/01/2010
Eduardo Mourão Vasconcelos
Psicólogo, cientista político, e professor da UFRJ

Eduardo Mourão Vasconcelos já esteve conosco, trazido a Teresina por Professora Lúcia Rosa ministrou curso sobre suporte e ajuda mútua para usuários e familiares. É o cara! Mas quem sabe mesmo quem é o novo coordenador de saúde mental do ministério? Será mais uma mulher? Técnicos piauienses torcem pelo nome do psiquiatra Marcelo Kimatti, acho que ele é paulista, radicado no Rio Grande do Norte, assessor do ministério, compôs junto com Edmar Oliveira e outros piauenses o grupo que fechou definitivamente o Meduna e a porta de entrada no HAA, com a instalação da enfermaria de crise.

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POR UMA CLÍNICA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA: COM SUBJETIVIDADE, MEDICAÇÃO COM MENOS EFEITOS COLATERAIS E MAIOR PODER DE RESOLUTIVIDADE ASSOCIADA A PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES.