segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

JORGE, Miguel R e FRANCA, Josimar MF. A Associação Brasileira de Psiquiatria e a Reforma da Assistência Psiquiátrica no Brasil. Rev. Bras. Psiquiatr. [online]. 2001, vol. 23, no. 1 [citado 2007-02-16], pp. 3-6.

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A posição da ABP
Quando da apresentação do Projeto de Lei pelo deputado Paulo Delgado em 1989, a Associação Brasileira de Psiquiatria participava de um grupo de trabalho da Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde que discutia a modernização da legislação psiquiátrica no país. Essa associação considerou que o projeto de lei apresentado correspondia em linhas gerais aos seus anseios, tendo aprovado uma moção de apoio ao mesmo em congresso realizado em São Paulo ainda naquele ano. Posteriormente, a ABP veio a participar ativamente das discussões que o mesmo suscitou em diversos níveis, inclusive no Senado Federal (onde compareceram Ullysses Vianna Filho e Marcos Pacheco de Toledo Ferraz, dois ex-presidentes da associação). Naquela ocasião, por esses dois lídimos representantes, a Associação Brasileira de Psiquiatria mais uma vez manifestou opinião favorável ao projeto de lei, embora criticasse a proposição de "extinção progressiva dos manicômios", se esse termo estivesse ali como sinônimo de hospital psiquiátrico.
A Assembléia de Delegados, órgão máximo da Associação Brasileira de Psiquiatria, reunida em outubro de 1999 em Fortaleza, aprovou por unanimidade uma posição oficial da entidade que apóia todo e qualquer movimento que defenda os direitos de cidadania das pessoas acometidas por transtornos psiquiátricos, bem como considera essencial a atuação médico-psiquiátrica no tratamento, na readaptação e nos processos de ressocialização dessas pessoas. O que essa associação defende é que se garanta aos pacientes não somente seus direitos básicos de cidadãos, como também, e principalmente, o direito de ser alvo de atenção profissional de qualidade e poder usufruir dos melhores recursos diagnósticos e terapêuticos disponibilizados pelo progresso da ciência, além de uma necessária normatização das internações involuntárias e compulsórias.
Entendemos que a imensa maioria dos "hospitais psiquiátricos" brasileiros mereçam ser fechados, pois sequer poderiam ser denominados de hospitais. Muitos deles constituem apenas um depósito desumanizado de pacientes, funcionando como elemento intensificador de doenças, pois não é possível denominar-se tratamento a uma consulta semanal de poucos minutos. Não consideremos essa prática, entretanto, como sinônimo de internação hospitalar. A despeito do progresso observado nos meios diagnósticos e terapêuticos à disposição dos psiquiatras e de outros profissionais da saúde mental, e mesmo contando com adequada rede de serviços assistenciais extra-hospitalares (o que ainda não ocorre em nosso país), hospitais psiquiátricos de qualidade têm um papel a cumprir dentre os recursos com os quais devemos contar para a proteção de alguns de nossos pacientes.
Situações clínicas que representem risco para o paciente ou para outras pessoas, bem como a instituição de procedimentos terapêuticos que demandam acompanhamento especializado contínuo, implicam necessariamente a internação do paciente como medida protetiva. Essa internação, sempre que possível em serviço próximo ao de moradia do paciente, poderá se dar – na dependência de características nosológicas, terapêuticas e mesmo individuais – em enfermarias psiquiátricas de hospitais gerais ou mesmo em hospitais psiquiátricos. Critérios objetivos devem nortear o credenciamento dos serviços psiquiátricos (mesmo extra-hospitalares) considerados de qualidade, bem como a sua distribuição ao longo do território nacional.
Também consideramos oportuno que se delimite conceitualmente os hospitais psiquiátricos dos assim chamados manicômios (em realidade, judiciários) e instituições de caráter asilar. Em relação a estes últimos, há que se proceder a uma avaliação caso a caso de pacientes que, mais por condições sociais que propriamente nosológicas, necessitem permanecer institucionalizados por longos períodos de tempo. Dizia Yves Pelicier que asilo era "um lugar para os sem lugar".
Sempre que a desinstitucionalização for possível – e ela é na maioria das vezes – deve ser feita de forma gradual, assistida e respeitando as vulnerabilidades de cada pessoa. O que se denominou corretamente de desinstitucionalização não pode representar, como se observou em muitos países, desospitalização com desassistência. Ou, como já se ouviu, "o que está havendo é despejo e não desospitalização".
Outro aspecto importante, e muitas vezes negligenciado, é que a hospitalização ou manutenção desnecessária do paciente internado não são os únicos agentes que tornam crônicas manifestações psicopatológicas. Na realidade, a cronicidade está mais relacionada à ausência de assistência ou à assistência inadequada do que necessariamente ao local onde ela acontece. Encontramos pacientes com quadros psiquiátricos intensificados entre os sem-teto que perambulam desassistidos pelas ruas e mesmo entre pacientes usuários de serviços extra-hospitalares nunca internados anteriormente.
Simplesmente fechar as portas dos hospitais, sem antes criar locais de atendimento adequado aos pacientes, com a devida requalificação dos profissionais para esse novo tipo de demanda, joga os pacientes no limbo da falta absoluta de cuidados e viola seu direito mais essencial: acesso ao melhor tratamento disponível para a sua necessidade clínica. Dentro dessa premissa, há espaço para leitos psiquiátricos que representem efetivo avanço no modelo de assistência hospitalar. O que observamos é que não tem interessado à iniciativa privada investir para modernizar seus hospitais psiquiátricos, criar unidades psiquiátricas em hospital geral ou boas estruturas extra-hospitalares substitutivas como hospitais-dia. E uma das razões para isto é que, deixando de oferecer uma assistência massificada e voltando-se para uma atenção mais individualizada, com equipes multiprofissionais qualificadas, esbarra em um custo mais alto do que a simples manutenção de macro-hospitais psiquiátricos, custo esse não remunerado adequadamente pelo SUS ou por convênios e planos de saúde privados.
Ressalte-se igualmente a importância de investimento em programas de reabilitação, importante fator de redução de morbidade e das taxas de reinternação, aumentando a qualidade de vida e a autonomia dos pacientes, além de aumentar a adesão ao tratamento. A reabilitação psicossocial amplia os benefícios obtidos pelo tratamento clínico de modo a minimizar os efeitos da incapacidade e das deficiências.
A necessária reforma da assistência psiquiátrica no Brasil não pode ser partidária ou transformada em instrumento de lutas corporativas, para não deixar de atender aos interesses dos pacientes e seus familiares, exatamente os mais penalizados pela situação que originou esse movimento na década de 80 e que, apesar do que se conseguiu até aqui, ainda persiste nos dias de hoje.
Finalmente, no que diz respeito à internação psiquiátrica involuntária, é nosso pensamento que deva ser facultado ao médico – da mesma forma como em outras especialidades – adotar procedimento que seu conhecimento técnico e sua experiência recomendem como o mais apropriado, particularmente nas situações em que exista risco para a integridade física do próprio paciente ou de outrem. Uma vez que o paciente tenha sido internado involuntariamente, e se caracterize um conflito de opiniões entre o parecer médico e sua vontade, a legislação deve prever uma instância de arbitramento– em nossa sociedade, usualmente no âmbito judiciário – que possa, com a devida assessoria técnica, decidir quanto à manutenção ou não do paciente internado.

CONCLUSÃO
Em síntese, a Associação Brasileira de Psiquiatria entende que muito se avançou nas discussões concernentes aos conteúdos do Projeto de Lei originalmente proposto pelo deputado Paulo Delgado e de seus substitutivos. A sociedade brasileira como um todo, os psiquiatras e outros profissionais de saúde mental e, particularmente, os pacientes com transtornos psiquiátricos e seus familiares necessitam urgentemente que essa Casa chegue logo a um texto final após mais de dez anos de tramitação do referido projeto de lei no Congresso Nacional.
Deve-se inserir a reforma da assistência psiquiátrica dentro da política de saúde mais geral e também dentro da política econômica do país. Não deve ser justificativa principal a diminuição dos custos com o tratamento. Políticas sociais no Brasil, particularmente na área da saúde e da educação, estão ainda por merecer atenção e investimento adequados para se tornarem disponíveis a todos os segmentos populacionais.


Miguel R Jorge e Josimar MF França
Associação Brasileira de Psiquiatria


*Texto baseado nos relatórios apresentados pelos autores, respectivamente, Presidente e Secretário Geral da ABP, em audiência pública da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, Brasília, 19/10/2000. 

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