Em 18 de maio de 1987, na cidade de Bauru, SP, aconteceu o Congresso
dos Trabalhadores de Saúde Mental, em cujo seio nasceu o Movimento
Nacional da Luta Antimanicomial. Em Santos o assunto fervilhava, devido à
existência da Casa de Saúde Anchieta,
chamada de “Casa dos Horrores”, um hospital psiquiátrico à antiga (ou
nem tanto), que usava choques elétricos e medicação abundante e mantinha
internos por décadas.
Eu deveria ter ido a esse Congresso, mas minha mulher estava grávida de nove meses (minha filha nasceu uma semana depois), e fiquei roendo as unhas de vontade, acompanhando o movimento que se abria em Santos.
No dia 02 de maio de 1989 o deputado Paulo Delgado apresentou o Projeto de Lei 3657/89, que se baseava na legislação italiana e fechava todos os hospitais psiquiátricos. No dia seguinte, a prefeita de Santos, Telma de Souza, assinou um decreto que determinava a intervenção municipal no Anchieta. O Secretário da Saúde, Davi Capistrano, capitaneou o fechamento do Hospital e a remoção dos internos, que passaram a ser atendidos em hospitais-dia e a conviver com as famílias. Uma usina de reciclagem foi criada para o inicio da ressocialização dos loucos, que passaram a se chamar assim entre eles. O arte-terapeuta Di Renzo criou a Rádio Tam-Tam, operada apenas pelos ex-internos e cujo sucesso ultrapassou fronteiras, chegando a ser artigo do New York Times.
O projeto de lei do deputado Delgado levou dois anos para ser aprovado, virando lei 10261/2001 o substitutivo do senador Sebastião Rocha, que desvirtuava a luta antimanicomial e mantinha a possibilidade de internações. Choques elétricos viraram eletroconvulsoterapia e as altas dosagens de medicamentos são linhas-mestras de muitos Institutos de Psiquiatria. Em 1992 havia, no Brasil, 83 mil leitos psiquiátricos mantidos pelo SUS, a um custo de R$ 250 milhões. Em 2005, o número caiu para 42 mil, mas as despesas subiram para R$ 460 milhões, sendo que 80% desse montante foram destinados ao setor privado, na maioria para redes de hospitais psiquiátricos de empresas de cunho familiar.
Outro dado importante: das verbas da saúde para a área, 63% vão para os hospitais, enquanto apenas 36% são encaminhados para os chamados trabalhos substitutivos, isto é, os Centros ou Núcleos de Atendimento Psicossocial (CAPs e NAPs), atendimento ambulatorial e outras redes alternativas à internação. E mesmo nas localidades onde há quantidade razoável de CAPs ou NAPs, é cada vez menor o investimento em profissionais e estrutura física dos equipamentos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS, qualidade de vida é definida como: "a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive e, em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações".
Quando nos reunimos com a Deputada Mara Gabrilli, para discutir o veto presidencial do parágrafo 2º do artigo 7º da Lei 12.764, de 27/12/2012 (é a lei que trata dos direitos às pessoas com autismo, e cujo artigo supra citado eximia o gestor escolar que recusasse a matrícula de penalidades), eu levei meu filho comigo. Foi um pedido dele: queria falar para a deputada que nem ele nem os amigos dele aceitam ter as matrículas negadas nas escolas onde estudam e mandados para escolas onde os amigos não podem ir, só porque são diferentes deles. Ele acha que as diferenças não impedem o convívio nem o aprendizado, e já tem noção de que são justamente essas diferenças que promovem o saber.
A Deputada Gabrilli prometeu a ele que não ia lutar por essa possibilidade e que, se dependesse dela, o veto permaneceria.
Desde esse episódio, não passa uma semana sem que meu filho me pergunte se “aquela mulher que só mexe do pescoço pra cima já desistiu de inventar escolas diferentes para crianças diferentes”. E nasceu uma angústia que ele não tinha: a de que eu morra e, sem a minha proteção, seja mandado para uma dessas escolas. É patente que o medo só existe porque existem essas escolas, e esse é o ponto. E eu, que jamais tive problema com a morte e a vejo como algo natural, também comecei a me preocupar com o tema: cada vez que penso no que meu filho me fala, traço planos para não morrer nos próximos dez anos, até que ele esteja adulto e possa decidir por si.
O Brasil assinou a Carta de Salamanca em 1994, comprometendo-se à inclusão total. Interesses múltiplos foram adiando seu cumprimento, e mantivemos um sistema híbrido. Não apareceu um gestor público com a coragem de Telma de Souza e Davi Capistrano, que não aceitaram os argumentos de que alguns loucos tinham que viver internados, e que libertasse nossas crianças das escolas “especiais”. Nós mesmos nos rendemos à argumentação, e alguns de nós defendem o sistema atual, acreditando que as escolas regulares não têm condições de receber essas crianças. Exatamente como falavam dos Caps, Naps e hospitais-dia em 1989 (alguns ainda falam hoje). Nenhuma calamidade aconteceu, em Santos, envolvendo loucos do Anchieta, nesses vinte e três anos, mas a qualidade de vida de todos eles deu um salto qualitativo.
Levei a história da luta antimanicomial, com artigos pró e contra, na reunião com a deputada, e deixei com a assessoria dela, para comparação. Não há grandes diferenças com a luta de Paulo Delgado, Telma de Souza e Davi Capistrano, e a luta da inclusão escolar atual.
No rastro da preparação para o decreto municipal que fechou o Anchieta, na condição de Diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Petróleo de Santos, Cubatão e São Sebastião, discursei em alguns lugares. Reproduzo o miolo dos discursos: “Neste país, ninguém que não tenha sido condenado por um tribunal colegiado pode ter suprimido o direito de conviver em sociedade. Nossos impostos não podem servir para patrocinar entidades que segregam cidadãos de ficha limpa, aos quais é imputado o ‘crime’ da diferença de ser ou de pensar. A única instituição que restringe o direito do cidadão de viver em sociedade e que tem o direito de ser sustentada pelo fruto do nosso trabalho é a penitenciária. O Estado tem o dever de usar nossos impostos com saúde, educação, habitação, trabalho e lazer, mas não para encarcerar e segregar irmãos nossos que não foram condenados porque não praticaram crime algum. Queremos nossos impostos gastos de maneira correta, e queremos nossos loucos de volta ao nosso lar.”
O senador Rocha deu um jeitinho para que nem todos voltassem, e para que o imposto que eu pago ainda seja usado para manter inocentes em reclusão. Não há lógica, nem explicação suficiente, que mostre que na Baixada Santista foi possível libertar todos, sem traumas sociais, e em outros lugares não.
Gente graúda movimenta-se hoje, para repetir a história. Outros personagens, outras instituições, mesmos princípios: a reserva de mercado.
Eu deveria ter ido a esse Congresso, mas minha mulher estava grávida de nove meses (minha filha nasceu uma semana depois), e fiquei roendo as unhas de vontade, acompanhando o movimento que se abria em Santos.
No dia 02 de maio de 1989 o deputado Paulo Delgado apresentou o Projeto de Lei 3657/89, que se baseava na legislação italiana e fechava todos os hospitais psiquiátricos. No dia seguinte, a prefeita de Santos, Telma de Souza, assinou um decreto que determinava a intervenção municipal no Anchieta. O Secretário da Saúde, Davi Capistrano, capitaneou o fechamento do Hospital e a remoção dos internos, que passaram a ser atendidos em hospitais-dia e a conviver com as famílias. Uma usina de reciclagem foi criada para o inicio da ressocialização dos loucos, que passaram a se chamar assim entre eles. O arte-terapeuta Di Renzo criou a Rádio Tam-Tam, operada apenas pelos ex-internos e cujo sucesso ultrapassou fronteiras, chegando a ser artigo do New York Times.
O projeto de lei do deputado Delgado levou dois anos para ser aprovado, virando lei 10261/2001 o substitutivo do senador Sebastião Rocha, que desvirtuava a luta antimanicomial e mantinha a possibilidade de internações. Choques elétricos viraram eletroconvulsoterapia e as altas dosagens de medicamentos são linhas-mestras de muitos Institutos de Psiquiatria. Em 1992 havia, no Brasil, 83 mil leitos psiquiátricos mantidos pelo SUS, a um custo de R$ 250 milhões. Em 2005, o número caiu para 42 mil, mas as despesas subiram para R$ 460 milhões, sendo que 80% desse montante foram destinados ao setor privado, na maioria para redes de hospitais psiquiátricos de empresas de cunho familiar.
Outro dado importante: das verbas da saúde para a área, 63% vão para os hospitais, enquanto apenas 36% são encaminhados para os chamados trabalhos substitutivos, isto é, os Centros ou Núcleos de Atendimento Psicossocial (CAPs e NAPs), atendimento ambulatorial e outras redes alternativas à internação. E mesmo nas localidades onde há quantidade razoável de CAPs ou NAPs, é cada vez menor o investimento em profissionais e estrutura física dos equipamentos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS, qualidade de vida é definida como: "a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive e, em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações".
Quando nos reunimos com a Deputada Mara Gabrilli, para discutir o veto presidencial do parágrafo 2º do artigo 7º da Lei 12.764, de 27/12/2012 (é a lei que trata dos direitos às pessoas com autismo, e cujo artigo supra citado eximia o gestor escolar que recusasse a matrícula de penalidades), eu levei meu filho comigo. Foi um pedido dele: queria falar para a deputada que nem ele nem os amigos dele aceitam ter as matrículas negadas nas escolas onde estudam e mandados para escolas onde os amigos não podem ir, só porque são diferentes deles. Ele acha que as diferenças não impedem o convívio nem o aprendizado, e já tem noção de que são justamente essas diferenças que promovem o saber.
A Deputada Gabrilli prometeu a ele que não ia lutar por essa possibilidade e que, se dependesse dela, o veto permaneceria.
Desde esse episódio, não passa uma semana sem que meu filho me pergunte se “aquela mulher que só mexe do pescoço pra cima já desistiu de inventar escolas diferentes para crianças diferentes”. E nasceu uma angústia que ele não tinha: a de que eu morra e, sem a minha proteção, seja mandado para uma dessas escolas. É patente que o medo só existe porque existem essas escolas, e esse é o ponto. E eu, que jamais tive problema com a morte e a vejo como algo natural, também comecei a me preocupar com o tema: cada vez que penso no que meu filho me fala, traço planos para não morrer nos próximos dez anos, até que ele esteja adulto e possa decidir por si.
O Brasil assinou a Carta de Salamanca em 1994, comprometendo-se à inclusão total. Interesses múltiplos foram adiando seu cumprimento, e mantivemos um sistema híbrido. Não apareceu um gestor público com a coragem de Telma de Souza e Davi Capistrano, que não aceitaram os argumentos de que alguns loucos tinham que viver internados, e que libertasse nossas crianças das escolas “especiais”. Nós mesmos nos rendemos à argumentação, e alguns de nós defendem o sistema atual, acreditando que as escolas regulares não têm condições de receber essas crianças. Exatamente como falavam dos Caps, Naps e hospitais-dia em 1989 (alguns ainda falam hoje). Nenhuma calamidade aconteceu, em Santos, envolvendo loucos do Anchieta, nesses vinte e três anos, mas a qualidade de vida de todos eles deu um salto qualitativo.
Levei a história da luta antimanicomial, com artigos pró e contra, na reunião com a deputada, e deixei com a assessoria dela, para comparação. Não há grandes diferenças com a luta de Paulo Delgado, Telma de Souza e Davi Capistrano, e a luta da inclusão escolar atual.
No rastro da preparação para o decreto municipal que fechou o Anchieta, na condição de Diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Petróleo de Santos, Cubatão e São Sebastião, discursei em alguns lugares. Reproduzo o miolo dos discursos: “Neste país, ninguém que não tenha sido condenado por um tribunal colegiado pode ter suprimido o direito de conviver em sociedade. Nossos impostos não podem servir para patrocinar entidades que segregam cidadãos de ficha limpa, aos quais é imputado o ‘crime’ da diferença de ser ou de pensar. A única instituição que restringe o direito do cidadão de viver em sociedade e que tem o direito de ser sustentada pelo fruto do nosso trabalho é a penitenciária. O Estado tem o dever de usar nossos impostos com saúde, educação, habitação, trabalho e lazer, mas não para encarcerar e segregar irmãos nossos que não foram condenados porque não praticaram crime algum. Queremos nossos impostos gastos de maneira correta, e queremos nossos loucos de volta ao nosso lar.”
O senador Rocha deu um jeitinho para que nem todos voltassem, e para que o imposto que eu pago ainda seja usado para manter inocentes em reclusão. Não há lógica, nem explicação suficiente, que mostre que na Baixada Santista foi possível libertar todos, sem traumas sociais, e em outros lugares não.
Gente graúda movimenta-se hoje, para repetir a história. Outros personagens, outras instituições, mesmos princípios: a reserva de mercado.
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