Transtornos e sintomas: o que é ser normal?
Como a saúde deve encarar a heterogeneidade humana? Como
separar interações pessoais e processos subjetivos de transtornos e
sintomas passíveis de serem tratados com medicamentos? Essas
preocupações sobre a condição humana também foram tema de debates no
congresso.
A controvertida quinta edição do Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) esteve na pauta de grupos
de trabalho, comunicações orais e mesas redondas. Atualizado em maio de
2013, o documento — que lista diferentes categorias de transtornos
mentais e critérios para diagnosticá-los de acordo com a Associação
Americana de Psiquiatria (APA) — tem recebido críticas da comunidade
científica.
Manual ‘normatizador’ e ‘limitado’
Para
muitos estudiosos, o manual continua reproduzindo um modelo de atenção
psiquiátrico de viés biológico e normatizador que traz como consequência
a medicalização excessiva. Segundo o pesquisador canadense Laurence
Kirmayer, da Universidade de McGill, no Canadá, havia a promessa de
que, em sua nova versão, o manual levasse em conta as interações
pessoais e os processos subjetivos — e não apenas síndromes e sintomas
clínicos. “Mas essa promessa não foi cumprida”, lamentou.
Ele
avaliou que o novo documento é limitado e conservador e que não provocou
quase nenhum impacto na prática psiquiátrica. “Apenas na retórica”, fez
questão de acrescentar. “É preciso valorizar os contextos e os
processos sociais e escutar a linguagem do paciente. É isso que pode
introduzir ferramentas mais sofisticadas para os clínicos”.
Intitulada
O DSM-V e suas implicações, a mesa trouxe inúmeras provocações ao
debate. A pesquisadora Sandra Caponi, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), reforçou as críticas de Laurence e disse que o manual
está longe de poder ser considerado a “bíblia da psiquiatria” ou de
representar a natureza das patologias com uma linguagem comum e
universal. “Por se tratar de uma lista de sintomas sem sustentação
científica sólida, o DSM-V não poderá ser usado como marco de referência
das pesquisas científicas”, argumentou, temendo o uso meramente
administrativo e burocrático do manual.
Publicado
originalmente em 1952, o DSM apontava 106 categorias de desordens
mentais. A cada nova edição, categorias são excluídas enquanto outras
são renomeadas, reorganizadas, adicionadas. O DSM-III, de 1980, com 494
páginas e uma lista de 265 categorias, foi considerado uma revolução na
prática psiquiátrica. Para Jane Russo, do Instituto de Medicina Social
da Uerj, o DSM-III transformou-se em um marco por romper com a
objetificação e a lógica classificatória.
Desde então, as
revisões são sempre acompanhadas de muita expectativa. Jane ponderou
que, apesar de todas as críticas pertinentes ao DSM-V, a revisão do
manual tem o mérito de lançar luzes sobre o tema com uma preocupação de
desafiar o reducionismo biológico. A plateia atenta envolveu-se no
debate, tentando relacionar o relatório às discussões atuais sobre
direitos humanos.
A palavra é ‘farmacologização’
Já
há uma palavra para representar o fenômeno contemporâneo que transforma
uma condição ou capacidade humana em oportunidade para intervenção da
indústria farmacêutica: farmacologização — do inglês
pharmaceuticalization. O termo, tema de palestra de Jonathan Gabe, da
Universidade Royal Holloway, de Londres, inclui o uso de fármacos com
objetivos não medicinais, como um “estilo de vida” entre pessoas
saudáveis. E estende-se, segundo o pesquisador, além do alcance
estritamente médico: “Pode haver farmacologização sem medicalização”.
“A
obesidade, por exemplo, é tratada cada vez mais com medicamentos, e
muitas vezes por meio de compras diretas pela internet”, explicou Gabe,
para quem a relação direta da indústria com os consumidores é um dos
principais aspectos da farmacologização. “Remédios são vistos no
imaginário como pílulas mágicas”, resumiu.
Gabe propôs lançar
um “olhar antropológico” sobre o fenômeno. Sem deixar de ressaltar que
medicamentos podem de fato salvar vidas de pessoas que têm problemas de
saúde, o pesquisador esmiuçou novos hábitos de consumidores e
estratégias da indústria. Uma delas é “vender a ideia de doença”, ou
seja, redefinir o que são problemas de saúde a partir do que tem uma
solução farmacêutica. O que inclui renomear problemas pessoais ou as
possibilidades e riscos de falhas: ansiedade social, síndrome das pernas
inquietas e disfunção erétil foram alguns exemplos listados pelo
estudioso.
“Vender a doença envolve também mudar as formas de
governança, com a aprovação cada vez mais rápida de novas drogas para o
mercado. As agências reguladoras passam a ser agentes da inovação, e não
guardiãs da saúde pública”, disse ele, que considera aspecto essencial
para a indústria farmacêutica alcançar a retirada dos obstáculos à livre
oferta de seus produtos ao consumidor.
O palestrante apontou
também o uso crescente de remédios para fins não médicos. Segundo ele,
esse tipo de utilização tem três objetivos: a normalização, ou seja,
tornar-se “normal” ou ajustado a um padrão; o reparo, como no caso de
tratamento da calvície; ou ainda o aumento da performance em determinada
atividade, quando o medicamento é utilizado por pessoas saudáveis.
“Isso já vem sendo feito na ausência de qualquer envolvimento médico,
como no caso de estudantes e executivos que tomam o estimulante
metilfenidato, a chamada ritalina (estimulante indicado para pessoas com
transtorno do déficit de atenção e hiperatividade)”, observou. O uso
crescente de antidepressivos, ansiolíticos e indutores do sono também
foi mencionado por ele.
Para Gabe, a mídia desempenha
importante papel na mediação da relação entre indústria e consumidores
de medicamentos. Mas a sua atuação não é, na opinião do pesquisador, tão
direta e maniqueísta como o da propaganda propriamente dita: a mídia
pode atuar como uma “ferramenta de marketing mascarada de educação”.
Sobre o lançamento de novos medicamentos, por exemplo, Gabe afirmou que
“a imprensa oscila entre a idealização e a condenação”.
Ele
chamou a atenção para os anúncios e as oportunidades de compra direta de
medicamentos por meio das novas mídias: “Há um fenômeno de banalização,
domesticação, no sentido de tornar-se uma ação doméstica, corriqueira,
cotidiana”. Gabe disse ver a procura de novos canais e suportes para a
farmacologização.
O pesquisador lembrou ainda que as
associações de pacientes de doenças raras ou crônicas têm um potencial
de ativismo para regular a entrada de novas drogas no mercado, e essa
característica é explorada pela indústria: “Os pacientes e familiares
são grupos de consumidores informados, tratados pela indústria como
parceiros”. Na análise dele, essa relação pode ser tanto boa quanto ruim
para a saúde coletiva. “O poder do ativismo pode levar à resistência
ou, ao contrário, ajudar a indústria farmacêutica. Vai depender se os
grupos estão cooptados ou mesmo formando uma barreira para defender-se
dela”, ponderou.
Governança global e medicamentos essenciais
Em
outra mesa, “Medicamentos e saúde global”, o historiador Jeremy Greene,
do Johns Hopkins Institute, nos Estados Unidos, reforçou a importância
de se compreender a força e as ações da indústria farmacêutica. O autor
dos livros Will to live, sobre a epidemia de aids, e The Republic of
Therapy, afirmou que a saúde vem sendo reconceitualizada em termos
farmacêuticos.
Greene, que se declarou “um estudioso do que
significa ser normal ou anormal, saudável ou doente”, defendeu que o
conceito de saúde é construído culturalmente e historicamente.
“Precisamos ter uma sensibilidade histórica para o conceito de saúde
global. O desenvolvimento tecnológico não é suficiente para explicar o
redirecionamento conceitual na direção das drogas, dos fármacos”, disse.
Para ele, está em curso uma comoditização da saúde e dos corpos: “Em
termos globais, há um excesso de consumo de medicamentos no Norte e um
subconsumo no Sul”, explicou.
O pesquisador discutiu o
contexto político e histórico da criação da Lista de Medicamentos
Essenciais e de suas alterações posteriores. O documento, publicado em
1977 e atualmente na sua 17ª versão, é utilizado como modelo para a
maioria das relações de medicamentos essenciais nacionais. A pergunta
que a lista tenta responder é, segundo ele: “As pessoas têm direito aos
fármacos?”.
“As listas de medicamentos essenciais nos países
da África até poucos anos atrás eram uma total farsa porque não incluíam
medicamentos contra a aids”, comentou Greene. Ao mostrar um mapa com
dados sobre a gravidade da epidemia da doença no continente, ele afirmou
que o estado de coisas apresentado evidencia a “falta de viabilidade
moral” das políticas globais de saúde. “As listas se compõem de
medicamentos que não são mais o de primeira escolha. A indústria se
utiliza do argumento ‘drogas velhas para um mundo pobre’, e as empresas
se articulam de maneira a não ver a ameaçada a propriedade intelectual”.
Sobraram
críticas também para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras
instituições internacionais, que, segundo o palestrante, não conseguem
ter eficácia normativa para defender que as listas de medicamentos
essenciais sejam atualizadas e adequadas aos Estados. “A OMS está
desabando. Não é o conceito de drogas essenciais, mas a OMS que está
desabando. A ideia da lista é muito válida e a OMS deve ser a guardiã”.
Extraído de:
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