quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A QUESTÃO DOS DIAGNÓSTICOS E FARMACOLOGIA NA SAÚDE MENTAL

Transtornos e sintomas: o que é ser normal?

Como a saúde deve encarar a heterogeneidade humana? Como separar interações pessoais e processos subjetivos de transtornos e sintomas passíveis de serem tratados com medicamentos? Essas preocupações sobre a condição humana também foram tema de debates no congresso.
A controvertida quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) esteve na pauta de grupos de trabalho, comunicações orais e mesas redondas. Atualizado em maio de 2013, o documento — que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (APA) — tem recebido críticas da comunidade científica.
 
Manual ‘normatizador’ e ‘limitado’
Para muitos estudiosos, o manual continua reproduzindo um modelo de atenção psiquiátrico de viés biológico e normatizador que traz como consequência a medicalização excessiva. Segundo o pesquisador canadense Laurence Kirmayer, da  Universidade de McGill, no Canadá, havia a promessa de que, em sua nova versão, o manual levasse em conta as interações pessoais e os processos subjetivos — e não apenas síndromes e sintomas clínicos. “Mas essa promessa não foi cumprida”, lamentou.
Ele avaliou que o novo documento é limitado e conservador e que não provocou quase nenhum impacto na prática psiquiátrica. “Apenas na retórica”, fez questão de acrescentar. “É preciso valorizar os contextos e os processos sociais e escutar a linguagem do paciente. É isso que pode introduzir ferramentas mais sofisticadas para os clínicos”. 
Intitulada O DSM-V e suas implicações, a mesa trouxe inúmeras provocações ao debate. A pesquisadora Sandra Caponi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), reforçou as críticas de Laurence e disse que o manual está longe de poder ser considerado a “bíblia da psiquiatria” ou de representar a natureza das patologias com uma linguagem comum e universal. “Por se tratar de uma lista de sintomas sem sustentação científica sólida, o DSM-V não poderá ser usado como marco de referência das pesquisas científicas”, argumentou, temendo o uso meramente administrativo e burocrático do manual.
Publicado originalmente em 1952, o DSM apontava 106 categorias de desordens mentais. A cada nova edição, categorias são excluídas enquanto outras são renomeadas, reorganizadas, adicionadas. O DSM-III, de 1980, com 494 páginas e uma lista de 265 categorias, foi considerado uma revolução na prática psiquiátrica. Para Jane Russo, do Instituto de Medicina Social da Uerj, o DSM-III transformou-se em um marco por romper com a objetificação e a lógica classificatória.
Desde então, as revisões são sempre acompanhadas de muita expectativa. Jane ponderou que, apesar de todas as críticas pertinentes ao DSM-V, a revisão do manual tem o mérito de lançar luzes sobre o tema com uma preocupação de desafiar o reducionismo biológico. A plateia atenta envolveu-se no debate, tentando relacionar o relatório às discussões atuais sobre direitos humanos.
 
A palavra é ‘farmacologização’
Já há uma palavra para representar o fenômeno contemporâneo que transforma uma condição ou capacidade humana em oportunidade para intervenção da indústria farmacêutica: farmacologização — do inglês pharmaceuticalization. O termo, tema de palestra de Jonathan Gabe, da Universidade Royal Holloway, de Londres, inclui o uso de fármacos com objetivos não medicinais, como um “estilo de vida” entre pessoas saudáveis. E estende-se, segundo o pesquisador, além do alcance estritamente médico: “Pode haver farmacologização sem medicalização”.
“A obesidade, por exemplo, é tratada cada vez mais com medicamentos, e muitas vezes por meio de compras diretas pela internet”, explicou Gabe, para quem a relação direta da indústria com os consumidores é um dos principais aspectos da farmacologização. “Remédios são vistos no imaginário como pílulas mágicas”, resumiu.
Gabe propôs lançar um “olhar antropológico” sobre o fenômeno. Sem deixar de ressaltar que medicamentos podem de fato salvar vidas de pessoas que têm problemas de saúde, o pesquisador esmiuçou novos hábitos de consumidores e estratégias da indústria. Uma delas é “vender a ideia de doença”, ou seja, redefinir o que são problemas de saúde a partir do que tem uma solução farmacêutica. O que inclui renomear problemas pessoais ou as possibilidades e riscos de falhas: ansiedade social, síndrome das pernas inquietas e disfunção erétil foram alguns exemplos listados pelo estudioso.
“Vender a doença envolve também mudar as formas de governança, com a aprovação cada vez mais rápida de novas drogas para o mercado. As agências reguladoras passam a ser agentes da inovação, e não guardiãs da saúde pública”, disse ele, que considera aspecto essencial para a indústria farmacêutica alcançar a retirada dos obstáculos à livre oferta de seus produtos ao consumidor. 
O palestrante apontou também o uso crescente de remédios para fins não médicos. Segundo ele, esse tipo de utilização tem três objetivos: a normalização, ou seja, tornar-se “normal” ou ajustado a um padrão; o reparo, como no caso de tratamento da calvície; ou ainda o aumento da performance em determinada atividade, quando o medicamento é utilizado por pessoas saudáveis. “Isso já vem sendo feito na ausência de qualquer envolvimento médico, como no caso de estudantes e executivos que tomam o estimulante metilfenidato, a chamada ritalina (estimulante indicado para pessoas com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade)”, observou. O uso crescente de antidepressivos, ansiolíticos e indutores do sono também foi mencionado por ele.
Para Gabe, a mídia desempenha importante papel na mediação da relação entre indústria e consumidores de medicamentos. Mas a sua atuação não é, na opinião do pesquisador, tão direta e maniqueísta como o da propaganda propriamente dita: a mídia pode atuar como uma “ferramenta de marketing mascarada de educação”. Sobre o lançamento de novos medicamentos, por exemplo, Gabe afirmou que “a imprensa oscila entre a idealização e a condenação”. 
Ele chamou a atenção para os anúncios e as oportunidades de compra direta de medicamentos por meio das novas mídias: “Há um fenômeno de banalização, domesticação, no sentido de tornar-se uma ação doméstica, corriqueira, cotidiana”.  Gabe disse ver a procura de novos canais e suportes para a farmacologização. 
O pesquisador lembrou ainda que as associações de pacientes de doenças raras ou crônicas têm um potencial de ativismo para regular a entrada de novas drogas no mercado, e essa característica é explorada pela indústria: “Os pacientes e familiares são grupos de consumidores informados, tratados pela indústria como parceiros”. Na análise dele, essa relação pode ser tanto boa quanto ruim para a saúde coletiva. “O poder do ativismo pode levar à resistência ou, ao contrário, ajudar a indústria farmacêutica. Vai depender se os grupos estão cooptados ou mesmo formando uma barreira para defender-se dela”, ponderou. 
 
Governança global e medicamentos essenciais
Em outra mesa, “Medicamentos e saúde global”, o historiador Jeremy Greene, do Johns Hopkins Institute, nos Estados Unidos, reforçou a importância de se compreender a força e as ações da indústria farmacêutica. O autor dos livros Will to live, sobre a epidemia de aids, e The Republic of Therapy, afirmou que a saúde vem sendo reconceitualizada em termos farmacêuticos. 
Greene, que se declarou “um estudioso do que significa ser normal ou anormal, saudável ou doente”, defendeu que o conceito de saúde é construído culturalmente e historicamente. “Precisamos ter uma sensibilidade histórica para o conceito de saúde global. O desenvolvimento tecnológico não é suficiente para explicar o redirecionamento conceitual na direção das drogas, dos fármacos”, disse. Para ele, está em curso uma comoditização da saúde e dos corpos: “Em termos globais, há um excesso de consumo de medicamentos no Norte e um subconsumo no Sul”, explicou. 
O pesquisador discutiu o contexto político e histórico da criação da Lista de Medicamentos Essenciais e de suas alterações posteriores. O documento, publicado em 1977 e atualmente na sua 17ª versão, é utilizado como modelo para a maioria das relações de medicamentos essenciais nacionais. A pergunta que a lista tenta responder é, segundo ele: “As pessoas têm direito aos fármacos?”.
“As listas de medicamentos essenciais nos países da África até poucos anos atrás eram uma total farsa porque não incluíam medicamentos contra a aids”, comentou Greene. Ao mostrar um mapa com dados sobre a gravidade da epidemia da doença no continente, ele afirmou que o estado de coisas apresentado evidencia a “falta de viabilidade moral” das políticas globais de saúde. “As listas se compõem de medicamentos que não são mais o de primeira escolha. A indústria se utiliza do argumento ‘drogas velhas para um mundo pobre’, e as empresas se articulam de maneira a não ver a ameaçada a propriedade intelectual”.
Sobraram críticas também para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras instituições internacionais, que, segundo o palestrante, não conseguem ter eficácia normativa para defender que as listas de medicamentos essenciais sejam atualizadas e adequadas aos Estados. “A OMS está desabando. Não é o conceito de drogas essenciais, mas a OMS que está desabando. A ideia da lista é muito válida e a OMS deve ser a guardiã”.
Extraído de:
 

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