Entre Maria Louca e Maria Maluquinha tem um Bolsa Família.
Por: Rita de Cássia de Araújo Almeida
Psicanalista
Trabalhadora de CAPS da Rede de Saúde Mental do SUS
Este texto tem uma personagem: Maria. Maria é um nome fictício, mas tudo
mais é real, tão real que muitos leitores vão pensar que é ficção.
No início da nossa história Maria é pobre, muito pobre, na verdade,
Maria é miserável. Sem nenhuma renda, ela e sua única filha vivem da
caridade e da boa vontade de pessoas e instituições. Maria também tem
pouquíssima escolaridade, parece uma personagem tirada daquele programa
de humor que é a cara da pobreza da nossa TV. Maria fala “pobrema”
(problema), “risistente social” (assistente social), “conselho titular”
(conselho tutelar), “presentivo” (preventivo), “elétrico”
(eletroencefalograma) dentre outras pérolas. Além de tudo Maria é louca,
e ela geralmente, concordava com este rótulo que lhe davam. Com algumas
passagens por hospícios da região, confessava: “nunca tive cabeça boa
pra trabalhar”.
Mas atualmente, Maria não aceita mais ser chamada de louca, se considera
uma “maluquinha”. Mas para fazer a travessia de louca para maluquinha,
passaram-se quase 10 anos, e muita coisa aconteceu nesse caminho,
incluindo um abençoado Bolsa Família. Eu sempre tive vontade de escrever
um texto sobre o Bolsa Família e achei apropriado usar a história de
Maria para fazê-lo.
Em 17 anos de trabalho em serviços de Saúde Mental do SUS (CAPS),
lidando diariamente com pessoas, em geral, pobres, muito pobres ou
miseráveis, aprendi uma coisa que só a experiência ensina. Existe uma
diferença descomunal, abissal, entre ser pobre e ser miserável. Quem não
lida cotidianamente com a população mais humilde, talvez conheça os
pobres, mas não conhece os miseráveis, já que eles são “invisíveis a
olho nu”. E esse seria o mesmo destino de Maria, ser invisível, mas
afinal, sua loucura incomodou e obrigou que a enxergássemos. Foi assim
que tomamos conhecimento de Maria, a louca, sem pai nem mãe, rejeitada
pela família, em sua miséria absoluta, dependendo do que encontrava no
lixo, de favores ou da caridade alheia para sobreviver com sua filha.
Quando ouço pessoas que criticam o Bolsa Família ou outro programa de
transferência de renda, dizendo que ele acostuma mal as pessoas,
estimula a preguiça e desvirtua o caráter, sinto vontade de vomitar.
Quem diz isso, definitivamente, não sabe o que é miséria. Quem faz esse
tipo de afirmação tosca e preconceituosa, para usar palavras
publicáveis, nunca passou pela situação de encontrar em R$ 70,00 algum
alento. Com pouquíssima probabilidade de errar, ninguém que está lendo
agora este texto sabe, na carne, o real valor de R$ 70,00. Maria sabe.
Muitos aqui vão duvidar, mas R$ 70,00 ou R$ 130,00 (média nacional do
valor repassado para cada família com o Bolsa Família), é capaz de
reduzir o enorme abismo entre a miséria e a pobreza, e com isso,
viabilizar um status inicial necessário para acessar qualquer outro tipo
possível de justiça social: ser visto.
E R$ 70,00 fez muita diferença na vida de Maria, não só pelo valor, mas
porque em mais de 30 anos de vida, esse foi o primeiro dinheiro que ela
conseguiu que não fosse por caridade ou proveniente de algum dos homens
com os quais, eventualmente, se aventurava a morar. Isso porque o Bolsa
Família não é tratado pelos profissionais, não pelos sérios e éticos,
como um mero benefício assistencial ou uma esmola do prefeito ou do
governo, mas como um direito. Sendo assim, o cartão do Bolsa Família foi
o primeiro direito que Maria conquistou, depois dele, como veremos,
muitos outros vieram.
Um segundo direito que Maria teve voz e força para exigir depois do
primeiro, foi uma pensão alimentícia para filha. O ex-companheiro de
Maria era alcoolista, raramente tinha trabalho fixo, e mesmo quando
conseguia algum trabalho, não pagava pensão, regularmente. Mas Maria
tinha aprendido a exigir seus direitos, e foi até às últimas
conseqüências para conseguir que o pai da menina pagasse a pensão, achou
até justo quando ele quase foi preso por não cumprir com a obrigação.
Hoje ele paga a pensão de R$ 90,00 assiduamente, e ela assina o recibo
na nossa frente (como ficou combinado na justiça), com a postura de quem
aprendeu a lutar pelo seu lugar no mundo.
A loucura de Maria, que se instalou desde o nascimento da filha,
continuava a lhe imputar uma incapacidade real para o trabalho formal.
Sua irritabilidade e instabilidade emocionais faziam de qualquer relação
possível com o outro, um inferno. Mesmo dentro do CAPS, eram comuns
suas agressões verbais e até físicas a técnicos e outros usuários.
Maria, eventualmente, se envolvia com homens com os quais imaginava
conquistar alguma segurança, mas em geral, eles obedeciam a um mesmo
padrão: alcoolistas ou usuários de drogas, também pobres, com ligações
familiares empobrecidas e sem trabalho fixo. Com esses homens, Maria
vive relações muito conturbadas e violentas. Assim também vinha
caminhando a relação com seu atual companheiro, e com o qual Maria teve
um filho, hoje com 3 anos.
Inúmeras vezes tentamos conseguir para Maria o BPC (Benefício de
Prestação Continuada), que assegura um salário mínimo para idosos, ou
pessoas com alguma deficiência grave, que não contribuíram com a
previdência social, desde que a renda familiar per capta não ultrapasse ¼
(um quarto) do salário mínimo vigente. Mas, apesar de inúmeras
tentativas, Maria não passava na perícia médica, não era considerada
suficientemente incapaz para fazer juz ao benefício.
O fato é que, após muita insistência, no final do ano passado, Maria
finalmente conseguiu o BPC e assim que teve certeza de que o benefício
chegaria, avisou com satisfação, que agora poderia devolver o cartão do
Bolsa Família para que ele pudesse ajudar outra pessoa. Era justo que
tivesse recebido o benefício por um tempo e agora, com sua nova condição
assegurada, era justo que o passasse adiante. Apesar de louca e
ignorante, como a maioria a considerava, Maria sabia o exato significado
da palavra justiça, mesmo tendo tão pouco acesso a ela.
Com alguns meses recebendo salário mínimo, além de poder atender suas
necessidades básicas e a dos dois filhos, Maria teve melhorias
subjetivas ainda mais notórias. A vaidade consigo mesma e com seu
pequeno barraco (herança dos pais), que mesmo nos tempos de miséria
insistiam em manter nela um pouco de orgulho, hoje se destacam e
evidenciam cada vez mais seu estilo. Maria sempre gostou de bijuteria,
maquiagem, sapato, bolsa e roupas e, tal como antes, ainda depende de
doações para atender a esses seus caprichos. Mas hoje ela parece feliz
em apenas poder se aventurar em entrar numa loja e perguntar o preço das
coisas. Ontem me abordou dizendo que viu uma calça igual a que eu
vestia por R$ 90,00, achou muito cara e, por isso, não comprou. Semana
passada Maria compartilhou numa reunião com outros usuários do CAPS, com
lágrimas nos olhos, que mês que vem irá realizar o sonho da sua vida:
comprar um jogo de panelas na loja. “Meu sonho é comprar um jogo de
panelas novo e colocar tudo em cima da mesa”. O projeto seguinte é
colocar piso na casa, toda de chão batido.
Também existem os preconceituosos de plantão que vão criticar os que,
depois de saírem do abismo da miséria, se rendem ao consumo. Então nós
vivemos numa sociedade capitalista e consumista, que propagandeia o
tempo todo que podemos alcançar felicidade comprando coisas e acusamos
de consumistas os que estão tendo a primeira oportunidade de testar se
essa teoria é verdadeira? Ah, tá!
Mas, quem acredita que uma renda mensal mínima tem apenas efeito de
consumo, também se engana. Cerca de dois meses depois de Maria ter
recebido seu primeiro salário mínimo questionei a ela como estava sua
relação com o companheiro, perguntei se ainda se estapeavam. E ela me
respondeu: “Não, agora eu não deixo mais ele me bater”. Sendo eu uma
psicanalista, poderia ter interpretado a frase dela dizendo: “Mas,
então, antes você deixava?” Mas não foi necessário, eu sabia exatamente
porque Maria aceitava apanhar. Ao contrário do que muitos podem supor
essa Maria, e muitas outras, não apanham por gosto ou costume, tampouco
são fãs dos “50 tons”. Nossas Marias aceitam a violência porque
acreditam que esse é o preço que têm que pagar para manter em casa seu
homem e com ele algum respeito, amor próprio ou possibilidade de
sustento para si mesma e para os seus filhos, ainda que esses sejam
ganhos totalmente ilusórios.
Já concluindo, preciso contar o que aconteceu no último mês de maio, por
ocasião da festa do nosso CAPS em comemoração ao dia Nacional de Luta
Antimanicomial. Durante os eventos, Maria nos surpreendeu ao pegar o
microfone e recitar uma longa poesia feita por ela, na qual tecia, com
muito humor, sua trajetória de louca à maluquinha. No seu poema, meio
cantado meio falado, “louca” tinha a conotação pejorativa que lhe davam
no passado e “maluquinha” falava de como ela se via hoje, do seu
jeitinho diferente, meio maluquinho sim, mas também capaz de declarar
seu amor pela vida e pelas pessoas que ali estavam. Era o outro com o
qual ela “nunca se dava” transformando-se, finalmente, em objeto de seu
amor.
Sim, passado o período em que só podia viver no campo da necessidade
imediata e urgente de sobreviver junto com seus filhos, Maria alcança o
campo da arte. Maria produz cultura. Atualmente está empolgadíssima com a
possibilidade de ser atriz em uma peça de teatro produzida pelo CAPS e
cuja história poderá ser a sua própria, aquela tecida em seu poema.
Ainda há quem chame Maria de louca. Para mim, louco é quem critica
benefícios sociais e programas de transferência de renda sem saber o que
é ser invisível. Muitos dirão que Maria é uma analfabeta ignorante.
Para mim, ignorante é quem não consegue olhar em torno, é quem só
consegue ver o mundo a partir do próprio umbigo.
Para você que insiste em criticar programas sociais, eu deixo Maria no
seu encalço. Mas se sua intenção for apenas criticar, com os amigos ou
nas redes sociais, algum tipo de benefício pago com recurso público
e que você não recebe, tenho algumas sugestões. Numa pesquisa rápida no
Google, descobri alguns auxílios concedidos a ministros, vereadores,
deputados, senadores, desembargadores, policiais federais, diplomatas,
altas patentes do exército, marinha ou aeronáutica e/ou juízes. São
eles: Bolsa Moradia, Bolsa Paletó, Bolsa Passagens Aéreas, Bolsa
Combustível, Bolsa Telefone, Bolsa Gabinete, Bolsa Alimentação, Bolsa
Despesas, Bolsa Creche, Bolsa Indenizatória, Bolsa Estudo, Bolsa Funeral
e Bolsa Assistência Médica. Obviamente, que nem todas as categorias
citadas recebem todos esses benefícios, mas cada uma delas recebe pelo
menos duas ou três “Bolsas” citadas. E, na verdade, esses benefícios não
são chamados de “Bolsa”, fui eu quem, propositalmente, os batizei com
esse nome. Mas bem que poderiam chamar, não é? (Eu não pesquisei o valor
de tais “Bolsas”, se você quiser fazê-lo fique à vontade. Sugiro apenas
que tome um antiácido antes)
Então, alguém aí pra tentar me convencer que o Bolsa Família não é um direito justo?
Publicado originalmente em:
Estas últimas semanas estive envolvida na luta pelas medicações que faltavam em alguns CAPS e ambulatórios da rede municipal e acompanhei alguns casos da luta para se conseguir um Benefício de Prestação Continuada (BPC), muito difícil para pessoas com transtorno mental por aqui. As pessoas podem não virem de uma família miserável, mas adultas improdutivas são um peso para estas famílias. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), deveria ser revista na questão do usuário de saúde mental, mesmo estabilizado e com alguma funcionalidade, são rejeitados nos postos de trabalho comuns por conta do estigma, preconceito e discriminação. Temos o caso da jornalista,moça branca, bonita fisicamente que tentou ser garçonete... o patrão perguntou se ela usava remédio controlado, o que ela afirmou que sim, já que visivelmente fala com a voz pastosa. Foi dispensada na primeiro dia de trabalho. Gostei deste texto discutindo, expondo a prática verdadeira de um serviço psicossocial, escrito por uma trabalhadora de CAPS. E abaixo outro texto questionando o manicomialismo na prática de alguns CAPS, também escrito por uma trabalhadora da Atenção Psicossocial. Pena que no Piauí não exista isto, gente que faça a crítica e exponha-se.