Memórias do hospício (VIII)
Toda vez que alguém associar CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) a atividade ambulatorial, esteja certo de que seu interlocutor, refém do imaginário manicomial, fala do que não sabe. A prática ambulatorial – uma das referências do modelo sanitário de organização dos serviços de saúde – tem sido um dos principais instrumentos de medicalização da sociedade. Em se tratando de saúde mental, um verdadeiro desastre ético.
Vale lembrar que o conceito de medicalização vai mais além do uso habitual das drogas farmacêuticas. Também se medicaliza através da palavra. Da palavra vazia, manipuladora dos conflitos da existência humana.
Ambulatórios, agregados aos hospitais psiquiátricos, raramente escapam do ranço autoritário do modelo manicomial, posto que a essência dos processos relacionais são fortemente marcadas pela ética da uma tutela castradora. Significa dizer que existe um outro tipo de tutela que implica na produção da autonomia desejada.
Numa visita, ainda que breve, aos dois modelos vigentes em Manaus – o hospital psiquiátrico, com seu ambulatório, e o CAPS da Zona Norte (com sua sabida precariedade: equipe exígua e em processo de construção de um paradigma antimanicomial) –, percebe-se a diferença do potencial gerado pela prática desse último. Primeiro, pela circulação da palavra entre cuidadores e usuários. Segundo, porque a dimensão dos cuidados tem como foco as necessidades de saúde, através de processos terapêuticos construtores de mais vida (expressão de Emerson Elias Merhy).
Além disso, o modelo de atenção psicossocial, diferentemente do modelo ambulatorial, tece no território uma rede de “dependências” saudáveis (termo usado por Tikanori) ao se entrelaçar com outros equipamentos sociais, com o intuito de promover inclusão social e o protagonismo de quem costumava ser silenciado quimicamente.
Se não há agir castrador, há uma ação liberadora de sujeitos entre si: a do cuidador que maneja melhor a palavra, e a do usuário que não aceita a imposição do silêncio.
Manaus, Janeiro de 2009.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com
Nota do blog: Artigo publicado no Caderno Raio-X do Jornal Amazonas em Tempo.
Um comentário:
Cada vez mais acredito menos na loucura. Quanto mais os termos ficam definidos menos me dá vontade de entende-los. Qual modelo virá amanhã? Com qual eufemismo, expressões cada vez mais distantes mas que significam o mesmo. As vezes penso do que seria da psiquiatria sem a "invenção" da lobotomia, o uso dos ECTs. Os velhos manicomios morreram, os velhos loucos tambem. Agora é os remedios, psicologia, transtornos. E toda a subjetividade acaba caindo sempre na mesma coisa, sobreviver. Dai caimos no outro manicomio,o maior deles, o mundo. Disciplinados pela ideologia do mercado,estimulados pelo medo. Acorrentados pelas drogas e as deliciosas psicoses do sonho americano. Todo louco se sente errado quando ve a porta de saida. Alguns poucos se arriscama a pisar lá fora. Um tanto se adapta e conseguem seu espaço. E desse tanto, um ou outro tem coragem de dizer: isso não té tão melhor que lá "dentro".
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